por Carolina Reigada
Atendia, como médica de família e comunidade, a população de uma comunidade carioca. Dentre tantas pessoas que via em uma semana de trabalho, um rosto se repetia, o de Rita.
Na primeira consulta, Rita tinha dores nas costas, que andavam para cima e para baixo, do pescoço ao quadril. Na segunda, a dor chegava à cabeça. Na terceira, a dificuldade para dormir apareceu. Na quarta ou quinta, finalmente chegaram as lágrimas. Rita guardava muita tristeza no corpo, e essa tristeza doía. Apertava o peito. A sacudia à noite, espantando o sono.
Rita, sem precisar falar, gritava. A equipe resolveu fazer uma visita domiciliar, para entender melhor essa vida que a torturava.
Rita morava no último platô antes do pico do morro. Eram 3 cômodos conjugados, e a casa era bem escura. Lá, moravam Rita, sua filha, seu filho e seu marido, Antônio. Na parede, uma foto de Rita jovem e sorridente ao lado de um homem alto. “Esse é o Antônio?”, eu perguntei.
“Pelo menos é assim que eu lembro dele”, ela respondeu.
Ali, sentada na sala-cozinha-quarto, Rita finalmente falou. Falou do que guardava no peito, nas costas, na cabeça. Antônio era bom, trabalhava o dia todo, chegava em casa para jantar e brincar com as crianças. Rita não sabe como aconteceu, mas Antônio foi mudando. Chegava tarde, bebia mais. Perdeu o emprego e demorou a conseguir outro. Chegava irritado. Ela tentava agradar, mas não adiantava. Será que era culpa dela?
Eu, calada, assistia ao filme que se desenrolava. Um filme que, infelizmente, eu e ela vimos e revimos, com diferentes protagonistas, sem querer ter comprado o ingresso. Mesmo sabendo que nossas poltronas eram muito diferentes, meu coração apertava e o bolo na garganta subia, enquanto eu aguardava o clímax.
Rita respirou fundo e soltou o ar. Deixou sair alguns soluços. Foram poucos, mas a transformaram. O rosto não era mais triste, era duro. Ela apontou para o centro da casa. Ali, ela disse, é onde ele me obriga a ajoelhar. É onde ele me bate com o cinto e, às vezes, urina em mim. Na frente dos meus filhos.
Os olhos estavam secos, as bochechas molhadas. A boca era um rasgo, o queixo era firme. O relato impressionava, mas o rosto não deixava dúvida: Rita não queria pena. Rita não merece pena. Rita merece respeito, colo e acolhimento. Rita merece apoio e Cuidado, com maiúsculo, para poder, por si, decidir qual será o rumo que irá seguir.
Aquelas confidências que dividimos em sua casa (re)inauguraram nossa relação. Agora, éramos cúmplices de um caminho que seria traçado.
As consultas com Rita continuaram, e minha alegria crescia vendo o orgulho que ela sentia de si, ao ver o quanto era capaz.
Depois de alguns meses, conheci sua filha. Rita a trouxe preocupada. Tinha 16 anos e começara a namorar. “E aí, já sabe, né?”, ela me disse.
Beatriz chegou numa tarde de quinta-feira. Rita deu um “tchau” da sala de espera, Beatriz entrou no consultório sozinha. Dentre tantas possíveis perguntas, comecei com: “o que te traz aqui hoje?”.
Beatriz começou falando sobre anticoncepcional, aproveitei para perguntar sobre o namoro. Era recente, mas ela estava empolgada. E vocês já transaram, eu perguntei. Ela disse que não, mas ele estava querendo. “E você?”, eu quis saber. Ela deu de ombros. Conversamos sobre consentimento e contracepção. Tudo muito biológico, como se estivéssemos ainda tímidas para papo de alma. Inventei uma desculpa para agendar um retorno.
Ela faltou. Voltou cerca de um mês depois. Reconheci logo as longas tranças coloridas que iam até o quadril.
“Como estão as coisas, Beatriz?”
Ela estava cabisbaixa. Me mostrou que andou cortando os antebraços, porque estava nervosa. O namorado, depois de uns meses, ficou diferente. Se irritava muito e a xingou uma vez, na rua. Ela deixou pra lá, mas as grosserias foram piorando, até que ele bateu nela. Não ficou marca na pele, ela disse. Na pele.
O sofrimento de sua mãe frente à violência que sofria de seu pai veio à tona. Ela sabia que estava sofrendo violência e entendia, muito melhor do que eu, as consequências. Ela não só assistiu de camarote, como ajudou a lavar, limpar e cuidar de muitas dessas ditas “consequências”, na pele de sua mãe. Na pele.
“Por que você continua com ele, então, Beatriz?”, eu perguntei
“Porque ele é branco”, ela respondeu.
Nada havia me preparado para essa resposta. Talvez porque eu seja branca. Silenciei por alguns segundos, enquanto tentava entender o que acontecia. Ela não falou mais, então perguntei: “E por que isso é importante para você?”
“Porque eu quero que meus filhos sejam brancos. Eu não quero que eles sofram o que eu sofro.”
Beatriz, 16 anos. À minha frente, uma mulher negra sendo violentada pelo racismo, pelo machismo, pela desigualdade social. Pelo namorado. Pelo pai. Sem encontrar saídas, pensava em ter filhos brancos, para que não sofram o que ela sofre. Um sofrimento real e legítimo, e sobre o qual eu me sentia tão, mas tão impotente. E lá estava ela, sofrendo-o e buscando soluções.
Lembro de “A redenção de Cam” e a política de embranquecimento da população brasileira. Lembro das festas de família e de escola, e as piadas racistas e machistas, tão comuns na classe média carioca. Lembro de “intelectuais” bradando que o povo brasileiro é gentil e acolhe a todas as raças.
Olho para Beatriz. Quem olha para Beatriz?