José

Fotos: vista do reservatório de Xiaolangdi no rio Amarelo em  Henan_portuguese.xinhuanet.com

por Ana Flávia Queiroz

José chorou. Entrou em meu consultório para uma consulta de apoio – solicitada pela enfermagem – e desmoronou. Foi só eu perguntar como poderia ajudá-lo naquela manhã que seus olhos marejaram. Tentou falar, não conseguiu. Um rio transbordava através de seus olhos. Chorou, chorou, chorou. Pego alguns lenços e entrego a ele.


-Desculpa.
-Não tem por que se desculpar, seu José.


Alguns minutos se passam e José se acalma. Pergunto se consegue me explicar o que está havendo.

-Me deixa entender o motivo dessa angústia toda.

-Ai, doutora. É tudo. É nada. Nem eu sei explicar.


Algumas frases soltas. Mais lágrimas. Soluços. As mãos sobre o rosto na tentativa de se esconder. A vulnerabilidade daquele homem de 64 anos despida bem ali na minha frente. Mas a angústia era maior que a vergonha naquele momento. Tão intensa que seu José não tinha controle nenhum sobre aquele pedido de socorro que saía em forma de pranto.


Problemas na família. Problemas financeiros. A cirurgia da próstata que estava se aproximando. “Sou uma pessoa difícil de lidar.”


Veio ao posto agendar os exames pré-operatórios solicitados pela equipe da urologia. Foi orientado na recepção que estes deveriam ser feitos no laboratório municipal, não aqui. Uma falha na comunicação. A gota que faltava para derramar aquele copo que há muito tempo estava cheio e quase transbordando. Cheio de palavras não ditas, frustrações acumuladas. Cheio daquela vida que era para ser e não foi.


Os vinte minutos de consulta foram inundados pelo rio que seu José jorrou. Alternados por alguns pedidos de “desculpa” e por longos períodos de silêncio. Pouca coisa foi dita naquele dia. Mas José não precisava de palavras para se comunicar. Seu pranto falou. Seu silêncio gritou. Eu entendi a mensagem.


Sugiro um retorno para a semana seguinte, para conversarmos. Seu José precisava ser ouvido. Falo da escuta terapêutica. Converso um pouco sobre psicoterapia. Naquele momento, num lapso de consciência e volta à realidade, José se levanta da cadeira e diz não precisar de nada daquilo. Explica que estava com algumas preocupações na cabeça, por isso se descontrolou. Insisto um pouco mais.

-Aqui é um ambiente seguro, sem julgamentos. Às vezes só precisamos desabafar. Estou aqui para te escutar.

Não adiantou. Seu id estava de volta aos controles do superego. Parou de chorar. Secou o rosto. Disse que já estava bem. Queria ir para casa. Antes de sair pede para me cumprimentar. Segura minha mão, sem olhar nos meus olhos diz “obrigado por me ouvir”.


Sai do meu consultório sem olhar para trás. A porta se fecha. José volta a se fechar.

por Augusto Breunig

Numa consulta na upa, em que o tempo é curto, a usuária de uns 60 anos de idade me contou que fora laçada no mato.

Sim, com sete anos sua família foi laçada e ela foi capturada para trabalhar para outra família. Fazer serviços domésticos.

Passados alguns anos, foi obrigada a se casar com o filho da família.


Não lembro mais da sua queixa, mas gostaria de ter gastado mais minutos para saber que acontecera com seus pais. E com seu captor/marido. Lembro que perguntei do que ela lembrava. Ela disse que sentia até hoje a floresta e lembra das músicas e espíritos.

Perguntei o que ela preferia, ela respondeu rápido: o antes.

Acredita?

por Felipe Ferreira

Oi doutor, marquei essa consulta porque tô tendo uns esquecimentos já faz uns meses e
estou preocupada…


Olho o prontuário: alguns testes de memória e pedidos de exames que eu sinceramente nunca
tinha ouvido falar (e se já ouvi, deve ter sido num desses ambulatórios específicos de neurologia
da faculdade). Pasmem: tinha até um registro do desenho do relógio! Aquele clássico que a
gente usa para quem tem progressão de doença demencial.


Ela tinha ali na faixa de uns 40 anos.


“Não pode ser”, pensei.


– Como assim dona Lu? Esquecida como exatamente?

– Então, eu tenho esquecido umas coisas bobas, sabe? Chaves do carro, tarefas de casa,
finanças. Tô que já nem sei mais e queria saber o que deram os exames, Dr, será q deu
alguma coisa aí?


-Olha…


Revejo mais uma vez o prontuário


-Aqui tá tudo normal viu? Sinceramente nos exames tá tudo normal. Vi que a senhora
pontuou super bem aqui no exame da memória e tudo segue nos conformes no sangue… o
que também não significa que nada esteja acontecendo, né dona Lu? Nessas horas a
gente precisa pensar no que é mais comum de acontecer com a pessoas na idade da
senhora, né? Como tem sido o sono?


-A partir daí, fomos caminhando juntos por boa parte da rotina dela.


-Psicóloga de linha humanista, era casada com um filho e um marido, ajudava muito na igreja, mas
sem transparecer tanto a sua fé. Talvez se sentisse confortável ali como um lugar de ofício… era
nova no território e desde q mudou estava buscando trabalho e encontrou na comunidade uma
forma de exercer sua paixão pelo cuidado em saúde mental. Com as dificuldades desses tempos
acabou se ajeitando na paróquia e ali ia seguindo sua trajetória.


Uma mulher negra.


Bastante convicta dos seus valores e do seu papel de cuidadora de si e da família, Dona Lu
seguia confiante na ideia de justamente não ter uma explicação do porquê, afinal de contas,
estava esquecendo tudo aquilo que era mais banal do seu cotidiano


-Deve ser a correria né doutor? Depois dessa mudança e tudo mais, talvez a gente fique
meio assim: esquecida das coisas mesmo. Me sinto feliz de estar tudo bem mas também
triste né, porque… no fundo a gente quer saber o motivo das coisas


Não estava tudo bem. A essa altura, já tinha esgotado a maior parte dos adoecimentos orgânicos
na minha cabeça: hipotireoidismo? O exame tava normal, anemia? Sangue lindão, sem qualquer
sinal de privação de ferro ou dismorfismos eritrocitários… Câncer? Sem nenhum histórico familial
ou outras alterações neurológicas… achei difícil.


Olho novamente o prontuário.


Gesta 2, para 1 A 1. Ela tinha falado do histórico ginecológico, mas até aí, nada de novo também.


A conta não batia.


-Passou tudo bem neste último ano q passou Dona Lu? Quer dizer, se é corrido, nessa
correria aconteceu alguma coisa?
-Tudo bem, as coisas tem andado muito bem lá em casa.
-Tudo mesmo? Aqui está falando que a senhora vivenciou um abortamento há um 1 ano
atrás, procede?
-Ah Dr, faz tempo isso… 6 anos já. Acho que escreverem errado aí. Mas nesse último ano
tudo tem andado bem sim.


Silêncio


-Engraçado o senhor comentar isso, quase já nem lembrava do que aconteceu
-Ah é? Mas a senhora como psicóloga, imagino q levou o que aconteceu para supervisão
não? Não deve ter sido fácil.
-Acredita que eu nem levei doutor? Engraçado, agora o senhor falando assim me faz até pensar
nisso, acho que deveria até falar em algum momento no futuro.
-Você falou com seu marido, pelo menos? Ele também era o pai deste, certo? Pelo que
entendi.
-Era sim! Mas também não conversamos muito sobre o que aconteceu, na época… na
verdade, ainda hoje não tocamos tanto neste assunto.


Mais silêncio.


Olhos brilhando.

-Quer falar sobre isso?

Não tinha sido planejado, mas, no fim, ela disse que amor não se planeja, só acontece. Como
aconteceu e continuou acontecendo mesmo depois de uma circular de cordão

Culpa. Foi isso que ela trouxe no final da minha pergunta.

Inteligente e competente em sua profissão, já compreendeu ali mesmo o sentimento já que era
ela a pessoa que além daquela criança, também carregava aquele cordão. Ainda que
absolutamente incapaz de controlar as movimentações dele dentro do útero, tinha plena
consciência: o sentimento era culpa, sem tirar nem por.

Quando o filho dela se foi, parte dela certamente se foi junto. E se foi tanto que depois de 6
anos, achar a parte perdida estava tão difícil a ponto que a rotina de hoje, a essa altura, já nem
importava lá tanto assim

O que é perder tão pouco para quem já perdeu demais? As vezes a gente perde as coisas só
para tentar se lembrar do que elas significam

-Seu corpo está te alertando, Dona Lu, não é demência

É luto né doutor?
É luta.

“Fica, tá cedo ainda”

por Felipe Ferreira

“Fica, tá cedo ainda”

É uma das últimas coisas que você me disse.

Gosto de pensar que você estava feliz aquele dia. Seus cabelos estavam escovados como de costume. Sua neta e sua filha riam junto com você e você estava cheirosíssima depois do banho da manhã. Aliás, afinal de contas, você estava feliz mesmo? Me arrependo de não ter perguntado, mas seu riso no canto da boca sinalizava que sim.

Fui presenteado pela vida muitas vezes depois de receber a oportunidade (e a responsabilidade) de ser seu médico. Mas o maior dos presentes foi ter tido a sorte de ter te visitado aquele dia. Eu e sua família conversamos muito sobre esse período e suas fases: terra, água, fogo e ar. Ali estávamos na fase do fogo; da melhora que ninguém sabe explicar exatamente por que acontece, mas acontece sem pedir licença.

Então você imagina a minha felicidade quando pudemos conversar sobre sua passagem de forma franca, honesta e realista; sem meias-palavras.

Há 8 anos aprendi a fazer isso de ser honesto com os sentimentos vestindo o nariz vermelho. Jamais esperaria que você, uma palhaça de excelência, iria me presentear toda quarta feira com sua forma mais autêntica de olhar para vida. Obrigado por me permitir vestir o nariz de novo com você todas as vezes que ríamos da verdade, sem ignora-la ou fingirmos que ela não estava ali.

Ela estava, mas você já estava em paz com isso né, minha amiga?

A conversa já estava posta. Você comeu aquela carne de porco gostosa da sua filha, passou um tempinho com aquele seu bisneto de nome difícil e passava os fins de tarde sendo cuidada pelo seu saudoso Orlando.

Sua fase do fogo foi linda e luminosa assim como você é para nós.

Se você me permitir, quero lhe dizer algumas últimas palavras no pé do ouvido da alma:

Eu te amo e te agradeço por ter me ensinado tanto em tão pouco tempo e por sempre me receber com ternura e confiança mesmo nos Seus momentos mais difíceis. Fizemos questão de organizar tudo para o  seu grande espetáculo, até mesmo o Santo Expedito e Nossa Senhora Aparecida estavam devidamente organizados na cômoda para sua última grande cena.

Vá em paz, beleza? Nos veremos.

Um abraço saudoso do seu médico de Sorocaba.

*Felipe fez residência em medicina de família e comunidade e escreveu esse texto durante seu estágio em cuidados paliativos, durante a residência

Questão de Ética

Artur Mendes

Os pacientes sempre perguntam se conheço algum médico dentre os que já as atenderam. Contudo, trabalhando em uma cidade maior, é quase impossível conhecer todo mundo. Eu me considero uma pessoa “corrida” (ou “rodada”, segundo as más línguas), mas mesmo assim raramente sei de quem os pacientes estão falando.
Apesar dessa dificuldade, fui aprendendo que as pessoas ficam felizes quando dizemos que conhecemos alguém.
Por esta razão, seguindo noções de bom político mineiro, me acostumei a sempre dizer que sei de quem falam. Não importa a especialidade ou o tempo de formado. Eu sempre digo que conheço. As pessoas ficam satisfeitas, fazem aquela cara de quem está gostando da consulta e que terão garantida a longitudinalidade de seu cuidado.
O problema é que fui me costumando demais com esse hábito. O excesso de confiança e os sorrisos dos pacientes me fizeram ultrapassar a perigosa linha da prudência. Porque agora, além de dizer que conheço, dei de tecer elogios ao desconhecido.
“Dr. Roque? Excelente pessoa!”
“Dra. Silvia? Não é menos que uma referência para as novas gerações””
“Se eu soube que o Dr. Antônio foi morar no exterior? Ele me ligou para pedir opinião sobre seus planos!”
E eu ia por aí… Até que, no dizer dos antigos, a porca torceu o rabo…
Era um dia qualquer e, depois da menção do nome de antigo ortopedista que o teria operado, paciente me pergunta se sei quem é. Não tive dúvidas e iniciei:
_ Ótimo profissional! Conheço demais!
_ Nossa, Dr., que bom que o senhor conhece… eu gosto muito dele…
Aí eu me animei…
_ Todo mundo gosta! É gente finíssima
_ Sim, muito divertido!
_ Com certeza! A alegria dos encontros médicos!
_ O fato de eu estar andando eu devo a ele…
_ Com certeza o senhor esteve em excelentes mãos!
_ … só não entendi porque ele teve o diploma cassado…
_ …
Pôxa, mas o cara tinha de ter o diploma cassado?!?
_ O senhor soube o que aconteceu?
E eu, quase pego na mentira, pensando em como me sair dessa:
_ Bom… o senhor sabe… foi algo bobo… mas não posso comentar à respeito… questão de ética…
E o paciente, tomado pela seriedade do termo, concordou:
_ Verdade, Dr.! Desculpa, eu não estava querendo que o senhor revelasse nenhum segredo profissional não…
Dei de ombros e fiz com as mãos abanando um gesto como quem diz “não tem problema, não tem problema”.
Terminamos a consulta, demos as mãos e ele foi embora. No seu caminhar eu tive a certeza de ter passado uma imagem sóbria e discreta. Tivesse virado de costas, contudo, teria notado minha face vermelha de vergonha.
Da próxima vez, vou tentar “conhecer” menos gente.

Da pele

por Carolina Reigada

Atendia, como médica de família e comunidade, a população de uma comunidade carioca. Dentre tantas pessoas que via em uma semana de trabalho, um rosto se repetia, o de Rita. 

Na primeira consulta, Rita tinha dores nas costas, que andavam para cima e para baixo, do pescoço ao quadril. Na segunda, a dor chegava à cabeça. Na terceira, a dificuldade para dormir apareceu. Na quarta ou quinta, finalmente chegaram as lágrimas. Rita guardava muita tristeza no corpo, e essa tristeza doía. Apertava o peito. A sacudia à noite, espantando o sono. 

Rita, sem precisar falar, gritava. A equipe resolveu fazer uma visita domiciliar, para entender melhor essa vida que a torturava. 

Rita morava no último platô antes do pico do morro. Eram 3 cômodos conjugados, e a casa era bem escura. Lá, moravam Rita, sua filha, seu filho e seu marido, Antônio. Na parede, uma foto de Rita jovem e sorridente ao lado de um homem alto. “Esse é o Antônio?”, eu perguntei. 

“Pelo menos é assim que eu lembro dele”, ela respondeu. 

Ali, sentada na sala-cozinha-quarto, Rita finalmente falou. Falou do que guardava no peito, nas costas, na cabeça. Antônio era bom, trabalhava o dia todo, chegava em casa para jantar e brincar com as crianças. Rita não sabe como aconteceu, mas Antônio foi mudando. Chegava tarde, bebia mais. Perdeu o emprego e demorou a conseguir outro. Chegava irritado. Ela tentava agradar, mas não adiantava. Será que era culpa dela?

Eu, calada, assistia ao filme que se desenrolava. Um filme que, infelizmente, eu e ela vimos e revimos, com diferentes protagonistas, sem querer ter comprado o ingresso. Mesmo sabendo que nossas poltronas eram muito diferentes, meu coração apertava e o bolo na garganta subia, enquanto eu aguardava o clímax. 

Rita respirou fundo e soltou o ar. Deixou sair alguns soluços. Foram poucos, mas a transformaram. O rosto não era mais triste, era duro. Ela apontou para o centro da casa. Ali, ela disse, é onde ele me obriga a ajoelhar. É onde ele me bate com o cinto e, às vezes, urina em mim. Na frente dos meus filhos. 

Os olhos estavam secos, as bochechas molhadas. A boca era um rasgo, o queixo era firme. O relato impressionava, mas o rosto não deixava dúvida: Rita não queria pena. Rita não merece pena. Rita merece respeito, colo e acolhimento. Rita merece apoio e Cuidado, com maiúsculo, para poder, por si, decidir qual será o rumo que irá seguir. 

Aquelas confidências que dividimos em sua casa (re)inauguraram nossa relação. Agora, éramos cúmplices de um caminho que seria traçado. 

As consultas com Rita continuaram, e minha alegria crescia vendo o orgulho que ela sentia de si, ao ver o quanto era capaz.

Depois de alguns meses, conheci sua filha. Rita a trouxe preocupada. Tinha 16 anos e começara a namorar. “E aí, já sabe, né?”, ela me disse. 

Beatriz chegou numa tarde de quinta-feira. Rita deu um “tchau” da sala de espera, Beatriz entrou no consultório sozinha. Dentre tantas possíveis perguntas, comecei com: “o que te traz aqui hoje?”.

Beatriz começou falando sobre anticoncepcional, aproveitei para perguntar sobre o namoro. Era recente, mas ela estava empolgada. E vocês já transaram, eu perguntei. Ela disse que não, mas ele estava querendo. “E você?”, eu quis saber. Ela deu de ombros. Conversamos sobre consentimento e contracepção. Tudo muito biológico, como se estivéssemos ainda tímidas para papo de alma. Inventei uma desculpa para agendar um retorno.

Ela faltou. Voltou cerca de um mês depois. Reconheci logo as longas tranças coloridas que iam até o quadril. 

“Como estão as coisas, Beatriz?”

Ela estava cabisbaixa. Me mostrou que andou cortando os antebraços, porque estava nervosa. O namorado, depois de uns meses, ficou diferente. Se irritava muito e a xingou uma vez, na rua. Ela deixou pra lá, mas as grosserias foram piorando, até que ele bateu nela. Não ficou marca na pele, ela disse. Na pele

O sofrimento de sua mãe frente à violência que sofria de seu pai veio à tona. Ela sabia que estava sofrendo violência e entendia, muito melhor do que eu, as consequências. Ela não só assistiu de camarote, como ajudou a lavar, limpar e cuidar de muitas dessas ditas “consequências”, na pele de sua mãe. Na pele

“Por que você continua com ele, então, Beatriz?”, eu perguntei 

“Porque ele é branco”, ela respondeu. 

Nada havia me preparado para essa resposta. Talvez porque eu seja branca. Silenciei por alguns segundos, enquanto tentava entender o que acontecia. Ela não falou mais, então perguntei: “E por que isso é importante para você?”

“Porque eu quero que meus filhos sejam brancos. Eu não quero que eles sofram o que eu sofro.”

Beatriz, 16 anos. À minha frente, uma mulher negra sendo violentada pelo racismo, pelo machismo, pela desigualdade social. Pelo namorado. Pelo pai. Sem encontrar saídas, pensava em ter filhos brancos, para que não sofram o que ela sofre. Um sofrimento real e legítimo, e sobre o qual eu me sentia tão, mas tão impotente. E lá estava ela, sofrendo-o e buscando soluções. 

Lembro de “A redenção de Cam” e a política de embranquecimento da população brasileira. Lembro das festas de família e de escola, e as piadas racistas e machistas, tão comuns na classe média carioca. Lembro de “intelectuais” bradando que o povo brasileiro é gentil e acolhe a todas as raças. 

Olho para Beatriz. Quem olha para Beatriz?  

Pernas covardes

por Jhusane Martins

Já por algumas semanas antes de me isolar com o vírus eu vinha andando bem frustrada pela baixa demanda da minha equipe. Como é possível uma das populações mais vulneráveis do território descer tão pouco para buscar a clínica? Em tese, a tendência não seria que os mais necessitados buscassem mais o sistema?

Embora eu ainda acredite que essa ideia não esteja completamente errada, depois da visita domiciliar que fizemos nesta semana passei a ver a coisa um pouco diferente.

Depois de tanto sobe, vira, dá a volta, desce e sobe de novo nos infinitos labirintos da comunidade, chegamos na casa de dona Belmira e seu Miguel no final de um beco sem saída. Fomos atendidos por um príncipe de 3 ou 4 aninhos que de pronto gritou aquele “ô vó!” gostoso de ouvir e logo nos colocou para dentro.

Enquanto se ocupava no fogão com o mingau de aveia e leite ninho do seu Miguel, dona Belmira tratou de derramar uma enxurrada de demandas sobre os visitantes.

                – Ele mija em tudo, eu passo o dia limpando lá em cima. Ô pai! Desce que o doutor quer falar com o senhor! Eu tenho depressão, doutor, tô com a pressão alta. Ele tá com o açúcar alto, meu filho, eu sei que tá. Ele faz no chão, daí a pouco vou limpar e tá tudo tomado de formiga. Desce aí, pai! Eu tomo remédio pra tristeza, tô dando pra ele dormir, porque senão num durmo. Filho deixa aí que a vó tá conversando. Olha, tá muito difícil, quem cuidava dele era minha sobrinha, ela se matou em janeiro. Eu não tô aguentando, tem que ver a pressão dele que tá alta, tô dando esse remédio aqui. Ô pai!!!

Enquanto seu Miguel descia, assistimos a esse monólogo confuso  de uma  idosa cheia de comorbidades, incluindo depressão, que junto ao marido desempregado, cuida do pai de 85 anos vindo de Belém para ficar com a sobrinha falecida recentemente.

Finalmente, com as mãos grudadas no corrimão e muita sorte segurando aquele chinelo quase solto no pé, seu Miguel sobreviveu à descida da escada sem acidentes.

De pequena, a sala de estar parecia ainda menor com a imensa televisão de tela plana de umas 50 polegadas e a escada de ferro íngreme e vazada. Mesmo assim, parecia ser o lugar mais longe que aquele senhorzinho seria capaz de ir com seu esqueleto cansado, a memória curta e a visão pouca.

Foi tentando entender até onde sua funcionalidade estava comprometida que descobrimos outro ingrediente que faltava para uma rotina mais ativa.

– Mas seu Miguel, o senhor fica na cama deitado o dia todo por quê?

– Ah doutor, é que falta coragem nas pernas.

(Foram atribuídos nomes fictícios e feitas adaptações visando o sigilo dos envolvidos.)

Primeiro dia

por Lucas Moreno

Primeiro dia do mês, primeiro dia de estágio de Medicina de Família e Comunidade, e na primeira hora acordado, o estudante de medicina sonha com o futuro, cria expectativas, inseguranças, medos e empolgação com as experiências que estão por vir dentro da área que tanto tem se imaginado fazer parte pro resto da vida. Começo o estágio buscando respostas, confirmações. Há dúvidas sobre o que realmente quero pro futuro, mas existe um desejo de querer essa especialidade, muito alimentado nos dias que precederam o início das atividades.

Mas enfim, já são oito da manhã e estou na UBS na qual vou passar as próximas duas semanas, buscando me encontrar na profissão. Nas apresentações, recebo algumas informações sobre a unidade que me causam certo desconforto. Há alguns problemas, como não haver uma estratégia de saúde da família bem estabelecida e outras questões, que fazem a insegurança surgir sobre como serão essas semanas para mim. Porém, sem muito tempo para alimentar isso, começamos os trabalhos do dia. Apenas um paciente pela manhã, um retorno para uma questão muito pontual, auxiliamos da melhor forma que pudemos. Uma experiência positiva, mas as dúvidas insistiam em querer tomar conta de mim, e seja lá o que for que eu buscava parecia estar distante ainda.

Na parte da tarde, recebo um prontuário do paciente que havia chegado para sua consulta. Vou procurar informações sobre ele para me preparar, mas há apenas uma folha de identificação do paciente. Ou seja, aquela seria sua primeira consulta na unidade, não sabia o que esperar, apenas que era um homem de 50 e poucos anos, chamado Alexandre. Peguei uma sala e fui logo chamá-lo…

– Alexandre?

Ao identificá-lo, avisto um homem simpático de meia idade, acompanhado de duas crianças e algumas grandes sacolas. Ofereço ajuda para carregar as sacolas e então nós 4 nos dirigimos para a consulta. No caminho até a sala, sou apresentado a duas educadas meninas, suas filhas, Manu e Isa de 11 e 9 anos, e ele me conta brevemente sua saga até a unidade, querendo justificar a presença das sacolas, que teve que trazer do trabalho, antes de ter que pegar as crianças na escola e vir direto para a consulta. Por um segundo, sinto o cansaço daquele período de seu dia, imaginando que ainda teria que enfrentar uma tarde de consultas médicas, primeiro ele, depois as crianças.

Chegando no consultório, nos ajeitamos, me apresento novamente, interajo com as crianças, e quando tomava o ar para perguntar o motivo do nosso encontro, Alexandre começa a elencar uma lista de questões que havia organizado em sua mente. Claramente, ele se preparou para aquele encontro, e se eu depositava minhas expectativas sobre o estágio, ele depositava as dele em mim de forma clara e bem estruturada, expectativas sobre problemas acumulados ao longo dos anos sem acompanhamento médico. Aquele momento era um primeiro passo em seu novo objetivo de cuidar mais de sua saúde, e ele parecia motivado após incentivos mais incisivos de sua esposa quanto a isso.

Voltando para a lista, chama atenção a ordem das queixas, começa pela que aparenta ser mais importante, uma dor no peito há alguns anos que disseram que poderia ser angina, depois vem 3 itens menos centrais, mas que ele julga importante avaliar, alguns exames de sangue perdidos no passado, possivelmente alterados, dois episódios de tonturas isolados que preocuparam na época, e uma necessidade de exame de próstata, que acredita poder ser adequado tendo em vista sua idade. Mas por último vem a queixa atual, que mais incomoda aparentemente, e talvez tenha sido o estopim para buscar ajuda com sua saúde. Dito em tom mais baixo, pela presença das filhas, ele fala de uma possível “alergia” nas partes íntimas, que tem atrapalhado as relações sexuais com a mulher, e suscitado desconfianças da parte dela sobre sua fidelidade no relacionamento, da qual se defende prontamente.

Bem, basicamente o que vejo ali é uma pessoa tentando arrumar sua vida, colocar as coisas em ordem, cuidando da sua saúde e de brinde da saúde de seu relacionamento. Aguardo ele terminar sua lista, e então, calmamente, vamos explorando melhor item por item. Entendendo melhor as queixas, tento entender agora quem era Alexandre e em que contexto estava inserido. A consulta fluía bem, num tom bastante amigável, uma boa relação parecia estar sendo estabelecida, o que me deixava muito satisfeito.

Enfim, nos encaminhamos para uma nova fase da consulta, o momento do exame físico, que eu decidi realizar de uma maneira completa, já que fazia muito tempo que ele não era examinado. Achei válido, portanto, iniciar todo o ritual do exame físico. Durante o processo, surge uma voz com um elogio inesperado: “Você é muito bom médico”.

Essa consulta não foi gravada como algumas foram no estágio para uma atividade de PBI, mas 4 olhinhos a filmavam atentamente. A voz era da filha mais velha de Alexandre, e eu não sei que critérios ela utilizou para chegar àquela conclusão, mas no momento que eu tocava seu pai para examiná-lo, foi quando pareceu mais adequado tecer tal elogio, que eu agradeci levemente sem jeito, mas com imensa felicidade. Prosseguindo naquele ritual, eu ia executando etapas do exame físico, entremeados com conversas com meu paciente e suas filhas, que interagiam demonstrando ter simpatizado comigo e mantendo uma observação atenta sobre minhas ações. E quando tentava aferir a pressão, foi a vez da mais nova dar sua impressão sobre mim, dizendo que me achava “muito legal”, e assim, eu constatava aquela pressão aumentada com um sorriso no rosto.

Ao terminar, ofereci o estetoscópio para elas terem pela primeira vez a experiência de ouvir o som de um coração. Aceitaram com empolgação, e boquiabertas e com um brilho nos olhos que há tempos eu não observava, elas auscultavam as bulhas rítmicas e normofonéticas do meu coração aquecido com a pureza daquele momento.

Nesse momento, percebo que o ritual que executamos em um exame físico, naturalmente se tornam rotineiros para quem ocupa o papel de médico em uma consulta. Porém, pela perspectiva das lentes daquelas crianças, aqueles gestos possuíam um conteúdo quase mágico. A capacidade de observar o interior de uma pessoa, através de técnicas simples ou com intermédio de certos instrumentos representa muita coisa, não à toa, foram práticas que revolucionaram a medicina e a forma de interação entre médico e paciente. Raramente nos damos conta do que simboliza aqueles minutos em que tocamos o paciente. Para as filhas de Alexandre, aquela fase da consulta parece ter simbolizado mais do que um ato técnico de investigação médica. Ao examiná-lo atentamente, a impressão é que chegamos no auge da demonstração de cuidado e acolhimento, onde um vínculo começa a se solidificar.

De forma mais discreta, o pai também demonstra se sentir cuidado e acolhido. No encerramento da consulta, agradece a atenção e o tempo dedicado a ele. Respira aliviado com os esclarecimentos, com o plano terapêutico que elaboramos juntos e com a garantia de uma longitudinalidade.

E quanto a mim, eu sinto a neblina formada pelos sentimentos de medo e insegurança daquela manhã do primeiro dia do mês e primeiro dia de estágio, se esvaírem, expondo um caminho, em que o destino ainda é incerto, mas que eu sei que devo trilhar.

No fim do dia, ainda lembro de uma frase sobre sucesso profissional na medicina, que inclui na definição de sucesso “…saber que ao menos uma vida respirou mais fácil porque você existiu”.

Refletindo sobre isso, me pergunto: será que aquelas 3 pessoas que cruzaram meu caminho naquela tarde, sabem do sucesso que alcançaram?

Respiro fácil, e começo a me preparar para o próximo dia…

Questões sobre o não dito

por Mateus Queiroz


Tarde de clínica cheia e o consultório – com um residente e dois internos – parecendo
cada vez menor, chega uma mulher jovem, com roupa de academia, bonita, mas
visivelmente abatida. Na planilha aparece que estava em uso de PEP e tendo problemas
com isso. Na hora já imaginei o pior e tomei a consulta para mim. Visivelmente abatida,
começa a falar. Está no dia 17 de PEP desde o evento, mas vem passando muito mal. Já
fez uso de PEP uma vez 3 anos atrás, mas não tinha sentido tanto os sintomas quanto
agora. Seu olhar fundo dá uma pista de momentos trágicos que havia passado.
O residente digita a consulta em silêncio enquanto que a outra interna começa a
perguntar mais sobre o evento em si. A paciente evade uma, duas vezes. Na 3ª tentativa
tento fazer um sinal para ela parar com as perguntas sobre esse momento, mas ela não
percebe. Nem que eu estava tentando avisar e nem que a paciente provavelmente tinha
sofrido alguma forma de violência sexual.
Não dá outra. Suspiro fundo seguido do desabafo. A paciente diz ser acompanhante e
que a exposição aconteceu em um momento de trabalho. Fala que tentou perguntar para
o homem, mas que ele hesitou e não passou nenhum tipo de segurança para ela. E que
desde então morre de preocupação. De medo. Tem vomitado quase todos os dias e está
prestes a desistir do tratamento, não aguenta mais passar por isso.
Numa tentativa de mostrar os degraus que podemos alcançar no momento, pergunto se
ela acha que as coisas melhorariam caso parasse o remédio. As lágrimas vêm seguidas
de um silêncio quase ensurdecedor. Explico como o nosso corpo e a nossa mente são
altamente ligados e que momentos de muito estresse, preocupação trazem respostas no
corpo todo. O que não quer dizer que seja coisa da cabeça dela, mas que o já pesado
efeito da medicação acaba se multiplicando. Não expliquei mais a fundo pois ela me
pareceu entender. Na verdade, já parecia saber, mas a minha confirmação fez com que
esse fato não pudesse ser ignorado.
Conforme vamos conversando ela começa a se mostrar um pouco mais confortável na
consulta. Totalmente ciente da sua situação, mostro para ela a diferença entre os pontos
positivos de continuar por mais uns 12 dias com o tratamento contra os pontos
negativos e ela mostra mais disposição e confiança para terminar o tratamento.
Mas o tom não era de otimismo. Nem meu e nem dela. Senti que nesse momento o não
falado disse mais do que qualquer frase motivacional genérica que as vezes escuto do
residente para pacientes que fazem tratamentos longos. A verdade é que ela não tinha
motivo para estar otimista. As nossas ferramentas para ajudá-la paravam na PEP e
convenhamos que – apesar de ser sempre louvável a quantidade de suporte médico que o
SUS oferta a população – isso era no máximo um sintomático. Ela ia continuar na
prostituição. Continuar exposta a sabe-se lá quanta violência. Não achei dados da
situação brasileira, mas vi que as prostitutas francesas têm expectativa de vida 40%
menor que as demais mulheres enquanto que 85% dessas prefeririam ter outra profissão
(https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2013/04/prostitutaprofissional-ou-vitima-brasil-e-franca-assumem-opinioes-opostas.html). Muito
provavelmente os números brasileiros são piores.
Como trazer uma perspectiva para uma pessoa tão marginalizada? A faculdade me
ensinou que a PEP é composta por Zidovudina e Lamivudina por 28 dias e que pode
causar uma série de efeitos adversos, muitos dos quais ela estava apresentando. Mas
assim como durante a consulta, o não falado pode dizer mais do que qualquer outra
coisa. O problema não é a PEP, o problema não é o estresse. O problema é a miséria.
Em 5 anos a faculdade não quis me explicar, ensinar respostas ou opções que eu
pudesse trazer praquela mulher e suas olheiras. Não tentou em nenhum momento me
estimular para pensar nesse tipo de pessoa. Talvez porque a própria faculdade não
pensa, pelo menos não quanto deveria.
Isso sem nem entrar no mérito de como eu, coadjuvante dessa história, também não
estava preparado para lidar com essa situação. Lidar com as mazelas de uma população
que parece só existir para sofrer. Sofrer e ser explorada. Acho triste como chego nessa
reflexão, mas sei que o aluno genérico da faculdade de medicina da UFRJ não vai. Não
vai e provavelmente acha que Medicina da Família e Comunidade é o Ó. Mesmo sendo
um dos maiores investimentos que o poder público e a população (principalmente a
mais pobre por conta da injusta cobrança proporcional de impostos no país) realiza em
formação de mão de obra. Serve a quem? Faz questionar sobre o projeto de país que
vivemos.
Como dizia o grande vascaíno Aldir Blanc, uma das mais de 500 mil vítimas da
COVID-19:
O Brazil não conhece o Brasil
O Brasil nunca foi ao Brazil.