Questão de Ética

Artur Mendes

Os pacientes sempre perguntam se conheço algum médico dentre os que já as atenderam. Contudo, trabalhando em uma cidade maior, é quase impossível conhecer todo mundo. Eu me considero uma pessoa “corrida” (ou “rodada”, segundo as más línguas), mas mesmo assim raramente sei de quem os pacientes estão falando.
Apesar dessa dificuldade, fui aprendendo que as pessoas ficam felizes quando dizemos que conhecemos alguém.
Por esta razão, seguindo noções de bom político mineiro, me acostumei a sempre dizer que sei de quem falam. Não importa a especialidade ou o tempo de formado. Eu sempre digo que conheço. As pessoas ficam satisfeitas, fazem aquela cara de quem está gostando da consulta e que terão garantida a longitudinalidade de seu cuidado.
O problema é que fui me costumando demais com esse hábito. O excesso de confiança e os sorrisos dos pacientes me fizeram ultrapassar a perigosa linha da prudência. Porque agora, além de dizer que conheço, dei de tecer elogios ao desconhecido.
“Dr. Roque? Excelente pessoa!”
“Dra. Silvia? Não é menos que uma referência para as novas gerações””
“Se eu soube que o Dr. Antônio foi morar no exterior? Ele me ligou para pedir opinião sobre seus planos!”
E eu ia por aí… Até que, no dizer dos antigos, a porca torceu o rabo…
Era um dia qualquer e, depois da menção do nome de antigo ortopedista que o teria operado, paciente me pergunta se sei quem é. Não tive dúvidas e iniciei:
_ Ótimo profissional! Conheço demais!
_ Nossa, Dr., que bom que o senhor conhece… eu gosto muito dele…
Aí eu me animei…
_ Todo mundo gosta! É gente finíssima
_ Sim, muito divertido!
_ Com certeza! A alegria dos encontros médicos!
_ O fato de eu estar andando eu devo a ele…
_ Com certeza o senhor esteve em excelentes mãos!
_ … só não entendi porque ele teve o diploma cassado…
_ …
Pôxa, mas o cara tinha de ter o diploma cassado?!?
_ O senhor soube o que aconteceu?
E eu, quase pego na mentira, pensando em como me sair dessa:
_ Bom… o senhor sabe… foi algo bobo… mas não posso comentar à respeito… questão de ética…
E o paciente, tomado pela seriedade do termo, concordou:
_ Verdade, Dr.! Desculpa, eu não estava querendo que o senhor revelasse nenhum segredo profissional não…
Dei de ombros e fiz com as mãos abanando um gesto como quem diz “não tem problema, não tem problema”.
Terminamos a consulta, demos as mãos e ele foi embora. No seu caminhar eu tive a certeza de ter passado uma imagem sóbria e discreta. Tivesse virado de costas, contudo, teria notado minha face vermelha de vergonha.
Da próxima vez, vou tentar “conhecer” menos gente.

Da pele

por Carolina Reigada

Atendia, como médica de família e comunidade, a população de uma comunidade carioca. Dentre tantas pessoas que via em uma semana de trabalho, um rosto se repetia, o de Rita. 

Na primeira consulta, Rita tinha dores nas costas, que andavam para cima e para baixo, do pescoço ao quadril. Na segunda, a dor chegava à cabeça. Na terceira, a dificuldade para dormir apareceu. Na quarta ou quinta, finalmente chegaram as lágrimas. Rita guardava muita tristeza no corpo, e essa tristeza doía. Apertava o peito. A sacudia à noite, espantando o sono. 

Rita, sem precisar falar, gritava. A equipe resolveu fazer uma visita domiciliar, para entender melhor essa vida que a torturava. 

Rita morava no último platô antes do pico do morro. Eram 3 cômodos conjugados, e a casa era bem escura. Lá, moravam Rita, sua filha, seu filho e seu marido, Antônio. Na parede, uma foto de Rita jovem e sorridente ao lado de um homem alto. “Esse é o Antônio?”, eu perguntei. 

“Pelo menos é assim que eu lembro dele”, ela respondeu. 

Ali, sentada na sala-cozinha-quarto, Rita finalmente falou. Falou do que guardava no peito, nas costas, na cabeça. Antônio era bom, trabalhava o dia todo, chegava em casa para jantar e brincar com as crianças. Rita não sabe como aconteceu, mas Antônio foi mudando. Chegava tarde, bebia mais. Perdeu o emprego e demorou a conseguir outro. Chegava irritado. Ela tentava agradar, mas não adiantava. Será que era culpa dela?

Eu, calada, assistia ao filme que se desenrolava. Um filme que, infelizmente, eu e ela vimos e revimos, com diferentes protagonistas, sem querer ter comprado o ingresso. Mesmo sabendo que nossas poltronas eram muito diferentes, meu coração apertava e o bolo na garganta subia, enquanto eu aguardava o clímax. 

Rita respirou fundo e soltou o ar. Deixou sair alguns soluços. Foram poucos, mas a transformaram. O rosto não era mais triste, era duro. Ela apontou para o centro da casa. Ali, ela disse, é onde ele me obriga a ajoelhar. É onde ele me bate com o cinto e, às vezes, urina em mim. Na frente dos meus filhos. 

Os olhos estavam secos, as bochechas molhadas. A boca era um rasgo, o queixo era firme. O relato impressionava, mas o rosto não deixava dúvida: Rita não queria pena. Rita não merece pena. Rita merece respeito, colo e acolhimento. Rita merece apoio e Cuidado, com maiúsculo, para poder, por si, decidir qual será o rumo que irá seguir. 

Aquelas confidências que dividimos em sua casa (re)inauguraram nossa relação. Agora, éramos cúmplices de um caminho que seria traçado. 

As consultas com Rita continuaram, e minha alegria crescia vendo o orgulho que ela sentia de si, ao ver o quanto era capaz.

Depois de alguns meses, conheci sua filha. Rita a trouxe preocupada. Tinha 16 anos e começara a namorar. “E aí, já sabe, né?”, ela me disse. 

Beatriz chegou numa tarde de quinta-feira. Rita deu um “tchau” da sala de espera, Beatriz entrou no consultório sozinha. Dentre tantas possíveis perguntas, comecei com: “o que te traz aqui hoje?”.

Beatriz começou falando sobre anticoncepcional, aproveitei para perguntar sobre o namoro. Era recente, mas ela estava empolgada. E vocês já transaram, eu perguntei. Ela disse que não, mas ele estava querendo. “E você?”, eu quis saber. Ela deu de ombros. Conversamos sobre consentimento e contracepção. Tudo muito biológico, como se estivéssemos ainda tímidas para papo de alma. Inventei uma desculpa para agendar um retorno.

Ela faltou. Voltou cerca de um mês depois. Reconheci logo as longas tranças coloridas que iam até o quadril. 

“Como estão as coisas, Beatriz?”

Ela estava cabisbaixa. Me mostrou que andou cortando os antebraços, porque estava nervosa. O namorado, depois de uns meses, ficou diferente. Se irritava muito e a xingou uma vez, na rua. Ela deixou pra lá, mas as grosserias foram piorando, até que ele bateu nela. Não ficou marca na pele, ela disse. Na pele

O sofrimento de sua mãe frente à violência que sofria de seu pai veio à tona. Ela sabia que estava sofrendo violência e entendia, muito melhor do que eu, as consequências. Ela não só assistiu de camarote, como ajudou a lavar, limpar e cuidar de muitas dessas ditas “consequências”, na pele de sua mãe. Na pele

“Por que você continua com ele, então, Beatriz?”, eu perguntei 

“Porque ele é branco”, ela respondeu. 

Nada havia me preparado para essa resposta. Talvez porque eu seja branca. Silenciei por alguns segundos, enquanto tentava entender o que acontecia. Ela não falou mais, então perguntei: “E por que isso é importante para você?”

“Porque eu quero que meus filhos sejam brancos. Eu não quero que eles sofram o que eu sofro.”

Beatriz, 16 anos. À minha frente, uma mulher negra sendo violentada pelo racismo, pelo machismo, pela desigualdade social. Pelo namorado. Pelo pai. Sem encontrar saídas, pensava em ter filhos brancos, para que não sofram o que ela sofre. Um sofrimento real e legítimo, e sobre o qual eu me sentia tão, mas tão impotente. E lá estava ela, sofrendo-o e buscando soluções. 

Lembro de “A redenção de Cam” e a política de embranquecimento da população brasileira. Lembro das festas de família e de escola, e as piadas racistas e machistas, tão comuns na classe média carioca. Lembro de “intelectuais” bradando que o povo brasileiro é gentil e acolhe a todas as raças. 

Olho para Beatriz. Quem olha para Beatriz?  

Pernas covardes

por Jhusane Martins

Já por algumas semanas antes de me isolar com o vírus eu vinha andando bem frustrada pela baixa demanda da minha equipe. Como é possível uma das populações mais vulneráveis do território descer tão pouco para buscar a clínica? Em tese, a tendência não seria que os mais necessitados buscassem mais o sistema?

Embora eu ainda acredite que essa ideia não esteja completamente errada, depois da visita domiciliar que fizemos nesta semana passei a ver a coisa um pouco diferente.

Depois de tanto sobe, vira, dá a volta, desce e sobe de novo nos infinitos labirintos da comunidade, chegamos na casa de dona Belmira e seu Miguel no final de um beco sem saída. Fomos atendidos por um príncipe de 3 ou 4 aninhos que de pronto gritou aquele “ô vó!” gostoso de ouvir e logo nos colocou para dentro.

Enquanto se ocupava no fogão com o mingau de aveia e leite ninho do seu Miguel, dona Belmira tratou de derramar uma enxurrada de demandas sobre os visitantes.

                – Ele mija em tudo, eu passo o dia limpando lá em cima. Ô pai! Desce que o doutor quer falar com o senhor! Eu tenho depressão, doutor, tô com a pressão alta. Ele tá com o açúcar alto, meu filho, eu sei que tá. Ele faz no chão, daí a pouco vou limpar e tá tudo tomado de formiga. Desce aí, pai! Eu tomo remédio pra tristeza, tô dando pra ele dormir, porque senão num durmo. Filho deixa aí que a vó tá conversando. Olha, tá muito difícil, quem cuidava dele era minha sobrinha, ela se matou em janeiro. Eu não tô aguentando, tem que ver a pressão dele que tá alta, tô dando esse remédio aqui. Ô pai!!!

Enquanto seu Miguel descia, assistimos a esse monólogo confuso  de uma  idosa cheia de comorbidades, incluindo depressão, que junto ao marido desempregado, cuida do pai de 85 anos vindo de Belém para ficar com a sobrinha falecida recentemente.

Finalmente, com as mãos grudadas no corrimão e muita sorte segurando aquele chinelo quase solto no pé, seu Miguel sobreviveu à descida da escada sem acidentes.

De pequena, a sala de estar parecia ainda menor com a imensa televisão de tela plana de umas 50 polegadas e a escada de ferro íngreme e vazada. Mesmo assim, parecia ser o lugar mais longe que aquele senhorzinho seria capaz de ir com seu esqueleto cansado, a memória curta e a visão pouca.

Foi tentando entender até onde sua funcionalidade estava comprometida que descobrimos outro ingrediente que faltava para uma rotina mais ativa.

– Mas seu Miguel, o senhor fica na cama deitado o dia todo por quê?

– Ah doutor, é que falta coragem nas pernas.

(Foram atribuídos nomes fictícios e feitas adaptações visando o sigilo dos envolvidos.)

Primeiro dia

por Lucas Moreno

Primeiro dia do mês, primeiro dia de estágio de Medicina de Família e Comunidade, e na primeira hora acordado, o estudante de medicina sonha com o futuro, cria expectativas, inseguranças, medos e empolgação com as experiências que estão por vir dentro da área que tanto tem se imaginado fazer parte pro resto da vida. Começo o estágio buscando respostas, confirmações. Há dúvidas sobre o que realmente quero pro futuro, mas existe um desejo de querer essa especialidade, muito alimentado nos dias que precederam o início das atividades.

Mas enfim, já são oito da manhã e estou na UBS na qual vou passar as próximas duas semanas, buscando me encontrar na profissão. Nas apresentações, recebo algumas informações sobre a unidade que me causam certo desconforto. Há alguns problemas, como não haver uma estratégia de saúde da família bem estabelecida e outras questões, que fazem a insegurança surgir sobre como serão essas semanas para mim. Porém, sem muito tempo para alimentar isso, começamos os trabalhos do dia. Apenas um paciente pela manhã, um retorno para uma questão muito pontual, auxiliamos da melhor forma que pudemos. Uma experiência positiva, mas as dúvidas insistiam em querer tomar conta de mim, e seja lá o que for que eu buscava parecia estar distante ainda.

Na parte da tarde, recebo um prontuário do paciente que havia chegado para sua consulta. Vou procurar informações sobre ele para me preparar, mas há apenas uma folha de identificação do paciente. Ou seja, aquela seria sua primeira consulta na unidade, não sabia o que esperar, apenas que era um homem de 50 e poucos anos, chamado Alexandre. Peguei uma sala e fui logo chamá-lo…

– Alexandre?

Ao identificá-lo, avisto um homem simpático de meia idade, acompanhado de duas crianças e algumas grandes sacolas. Ofereço ajuda para carregar as sacolas e então nós 4 nos dirigimos para a consulta. No caminho até a sala, sou apresentado a duas educadas meninas, suas filhas, Manu e Isa de 11 e 9 anos, e ele me conta brevemente sua saga até a unidade, querendo justificar a presença das sacolas, que teve que trazer do trabalho, antes de ter que pegar as crianças na escola e vir direto para a consulta. Por um segundo, sinto o cansaço daquele período de seu dia, imaginando que ainda teria que enfrentar uma tarde de consultas médicas, primeiro ele, depois as crianças.

Chegando no consultório, nos ajeitamos, me apresento novamente, interajo com as crianças, e quando tomava o ar para perguntar o motivo do nosso encontro, Alexandre começa a elencar uma lista de questões que havia organizado em sua mente. Claramente, ele se preparou para aquele encontro, e se eu depositava minhas expectativas sobre o estágio, ele depositava as dele em mim de forma clara e bem estruturada, expectativas sobre problemas acumulados ao longo dos anos sem acompanhamento médico. Aquele momento era um primeiro passo em seu novo objetivo de cuidar mais de sua saúde, e ele parecia motivado após incentivos mais incisivos de sua esposa quanto a isso.

Voltando para a lista, chama atenção a ordem das queixas, começa pela que aparenta ser mais importante, uma dor no peito há alguns anos que disseram que poderia ser angina, depois vem 3 itens menos centrais, mas que ele julga importante avaliar, alguns exames de sangue perdidos no passado, possivelmente alterados, dois episódios de tonturas isolados que preocuparam na época, e uma necessidade de exame de próstata, que acredita poder ser adequado tendo em vista sua idade. Mas por último vem a queixa atual, que mais incomoda aparentemente, e talvez tenha sido o estopim para buscar ajuda com sua saúde. Dito em tom mais baixo, pela presença das filhas, ele fala de uma possível “alergia” nas partes íntimas, que tem atrapalhado as relações sexuais com a mulher, e suscitado desconfianças da parte dela sobre sua fidelidade no relacionamento, da qual se defende prontamente.

Bem, basicamente o que vejo ali é uma pessoa tentando arrumar sua vida, colocar as coisas em ordem, cuidando da sua saúde e de brinde da saúde de seu relacionamento. Aguardo ele terminar sua lista, e então, calmamente, vamos explorando melhor item por item. Entendendo melhor as queixas, tento entender agora quem era Alexandre e em que contexto estava inserido. A consulta fluía bem, num tom bastante amigável, uma boa relação parecia estar sendo estabelecida, o que me deixava muito satisfeito.

Enfim, nos encaminhamos para uma nova fase da consulta, o momento do exame físico, que eu decidi realizar de uma maneira completa, já que fazia muito tempo que ele não era examinado. Achei válido, portanto, iniciar todo o ritual do exame físico. Durante o processo, surge uma voz com um elogio inesperado: “Você é muito bom médico”.

Essa consulta não foi gravada como algumas foram no estágio para uma atividade de PBI, mas 4 olhinhos a filmavam atentamente. A voz era da filha mais velha de Alexandre, e eu não sei que critérios ela utilizou para chegar àquela conclusão, mas no momento que eu tocava seu pai para examiná-lo, foi quando pareceu mais adequado tecer tal elogio, que eu agradeci levemente sem jeito, mas com imensa felicidade. Prosseguindo naquele ritual, eu ia executando etapas do exame físico, entremeados com conversas com meu paciente e suas filhas, que interagiam demonstrando ter simpatizado comigo e mantendo uma observação atenta sobre minhas ações. E quando tentava aferir a pressão, foi a vez da mais nova dar sua impressão sobre mim, dizendo que me achava “muito legal”, e assim, eu constatava aquela pressão aumentada com um sorriso no rosto.

Ao terminar, ofereci o estetoscópio para elas terem pela primeira vez a experiência de ouvir o som de um coração. Aceitaram com empolgação, e boquiabertas e com um brilho nos olhos que há tempos eu não observava, elas auscultavam as bulhas rítmicas e normofonéticas do meu coração aquecido com a pureza daquele momento.

Nesse momento, percebo que o ritual que executamos em um exame físico, naturalmente se tornam rotineiros para quem ocupa o papel de médico em uma consulta. Porém, pela perspectiva das lentes daquelas crianças, aqueles gestos possuíam um conteúdo quase mágico. A capacidade de observar o interior de uma pessoa, através de técnicas simples ou com intermédio de certos instrumentos representa muita coisa, não à toa, foram práticas que revolucionaram a medicina e a forma de interação entre médico e paciente. Raramente nos damos conta do que simboliza aqueles minutos em que tocamos o paciente. Para as filhas de Alexandre, aquela fase da consulta parece ter simbolizado mais do que um ato técnico de investigação médica. Ao examiná-lo atentamente, a impressão é que chegamos no auge da demonstração de cuidado e acolhimento, onde um vínculo começa a se solidificar.

De forma mais discreta, o pai também demonstra se sentir cuidado e acolhido. No encerramento da consulta, agradece a atenção e o tempo dedicado a ele. Respira aliviado com os esclarecimentos, com o plano terapêutico que elaboramos juntos e com a garantia de uma longitudinalidade.

E quanto a mim, eu sinto a neblina formada pelos sentimentos de medo e insegurança daquela manhã do primeiro dia do mês e primeiro dia de estágio, se esvaírem, expondo um caminho, em que o destino ainda é incerto, mas que eu sei que devo trilhar.

No fim do dia, ainda lembro de uma frase sobre sucesso profissional na medicina, que inclui na definição de sucesso “…saber que ao menos uma vida respirou mais fácil porque você existiu”.

Refletindo sobre isso, me pergunto: será que aquelas 3 pessoas que cruzaram meu caminho naquela tarde, sabem do sucesso que alcançaram?

Respiro fácil, e começo a me preparar para o próximo dia…

Questões sobre o não dito

por Mateus Queiroz


Tarde de clínica cheia e o consultório – com um residente e dois internos – parecendo
cada vez menor, chega uma mulher jovem, com roupa de academia, bonita, mas
visivelmente abatida. Na planilha aparece que estava em uso de PEP e tendo problemas
com isso. Na hora já imaginei o pior e tomei a consulta para mim. Visivelmente abatida,
começa a falar. Está no dia 17 de PEP desde o evento, mas vem passando muito mal. Já
fez uso de PEP uma vez 3 anos atrás, mas não tinha sentido tanto os sintomas quanto
agora. Seu olhar fundo dá uma pista de momentos trágicos que havia passado.
O residente digita a consulta em silêncio enquanto que a outra interna começa a
perguntar mais sobre o evento em si. A paciente evade uma, duas vezes. Na 3ª tentativa
tento fazer um sinal para ela parar com as perguntas sobre esse momento, mas ela não
percebe. Nem que eu estava tentando avisar e nem que a paciente provavelmente tinha
sofrido alguma forma de violência sexual.
Não dá outra. Suspiro fundo seguido do desabafo. A paciente diz ser acompanhante e
que a exposição aconteceu em um momento de trabalho. Fala que tentou perguntar para
o homem, mas que ele hesitou e não passou nenhum tipo de segurança para ela. E que
desde então morre de preocupação. De medo. Tem vomitado quase todos os dias e está
prestes a desistir do tratamento, não aguenta mais passar por isso.
Numa tentativa de mostrar os degraus que podemos alcançar no momento, pergunto se
ela acha que as coisas melhorariam caso parasse o remédio. As lágrimas vêm seguidas
de um silêncio quase ensurdecedor. Explico como o nosso corpo e a nossa mente são
altamente ligados e que momentos de muito estresse, preocupação trazem respostas no
corpo todo. O que não quer dizer que seja coisa da cabeça dela, mas que o já pesado
efeito da medicação acaba se multiplicando. Não expliquei mais a fundo pois ela me
pareceu entender. Na verdade, já parecia saber, mas a minha confirmação fez com que
esse fato não pudesse ser ignorado.
Conforme vamos conversando ela começa a se mostrar um pouco mais confortável na
consulta. Totalmente ciente da sua situação, mostro para ela a diferença entre os pontos
positivos de continuar por mais uns 12 dias com o tratamento contra os pontos
negativos e ela mostra mais disposição e confiança para terminar o tratamento.
Mas o tom não era de otimismo. Nem meu e nem dela. Senti que nesse momento o não
falado disse mais do que qualquer frase motivacional genérica que as vezes escuto do
residente para pacientes que fazem tratamentos longos. A verdade é que ela não tinha
motivo para estar otimista. As nossas ferramentas para ajudá-la paravam na PEP e
convenhamos que – apesar de ser sempre louvável a quantidade de suporte médico que o
SUS oferta a população – isso era no máximo um sintomático. Ela ia continuar na
prostituição. Continuar exposta a sabe-se lá quanta violência. Não achei dados da
situação brasileira, mas vi que as prostitutas francesas têm expectativa de vida 40%
menor que as demais mulheres enquanto que 85% dessas prefeririam ter outra profissão
(https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2013/04/prostitutaprofissional-ou-vitima-brasil-e-franca-assumem-opinioes-opostas.html). Muito
provavelmente os números brasileiros são piores.
Como trazer uma perspectiva para uma pessoa tão marginalizada? A faculdade me
ensinou que a PEP é composta por Zidovudina e Lamivudina por 28 dias e que pode
causar uma série de efeitos adversos, muitos dos quais ela estava apresentando. Mas
assim como durante a consulta, o não falado pode dizer mais do que qualquer outra
coisa. O problema não é a PEP, o problema não é o estresse. O problema é a miséria.
Em 5 anos a faculdade não quis me explicar, ensinar respostas ou opções que eu
pudesse trazer praquela mulher e suas olheiras. Não tentou em nenhum momento me
estimular para pensar nesse tipo de pessoa. Talvez porque a própria faculdade não
pensa, pelo menos não quanto deveria.
Isso sem nem entrar no mérito de como eu, coadjuvante dessa história, também não
estava preparado para lidar com essa situação. Lidar com as mazelas de uma população
que parece só existir para sofrer. Sofrer e ser explorada. Acho triste como chego nessa
reflexão, mas sei que o aluno genérico da faculdade de medicina da UFRJ não vai. Não
vai e provavelmente acha que Medicina da Família e Comunidade é o Ó. Mesmo sendo
um dos maiores investimentos que o poder público e a população (principalmente a
mais pobre por conta da injusta cobrança proporcional de impostos no país) realiza em
formação de mão de obra. Serve a quem? Faz questionar sobre o projeto de país que
vivemos.
Como dizia o grande vascaíno Aldir Blanc, uma das mais de 500 mil vítimas da
COVID-19:
O Brazil não conhece o Brasil
O Brasil nunca foi ao Brazil.

Empréstimo com Deus

Broche Bolo Coração Laço Confeitaria

por Arthur Fernandes

Berta é uma confeiteira daquelas de mão cheia. Trabalha com doces, bolos, tortas e também com salgadinhos. Por ironia do destino, descobriu que convive com o diabetes há alguns anos e, desde então, vive uma luta em torno do controle dos níveis de açúcar no sangue. 

“Não é só dar uma provadinha nos quitutes, doutor, é o prazer da comida, sabe? Eu sempre amei preparar e saborear as coisas que eu faço. Aprendi com minha mãe, mineira, que aprendeu com a mãe dela, mais mineira ainda. Quitute pra gente é um carinho na alma”, dizia.

Comecei o acompanhamento de Berta ano passado. Foram várias consultas, conversas e mensagens de reforço via WhatsApp até ela aderir bem ao uso correto das insulinas, à dieta e à atividade física. Muitos processos envolvidos: do aprender a guardar e usar as novas canetas de insulina até começar a dar outro sentido e outro sabor ao açúcar que colocava na boca. 

Na pandemia, Berta manteve seus cuidados muito bem. Distanciamento social, uso de máscaras e higiene. Infelizmente, certos riscos não desaparecerem pelo bom cuidado e compromisso das pessoas com a saúde. Berta convivia com o diabetes, e isso quer dizer que convivia alto risco de problemas do coração. Junto aos cigarros, que fumava há mais de 20 anos, esse risco era enorme. Tão enorme que deixou de ser risco e virou fato: Berta teve um infarto no início do ano. 

Apesar da superlotação nos hospitais, conseguiu ser atendida e internada para acompanhamento com cardiologista. Precisou de exames de sangue, cateterismo e vários remédios. Seu estado era grave e havia risco de complicações, inclusive se a equipe responsável resolvesse fazer uma cirurgia do coração. Berta acabou ficando mais de duas semanas internada. 

“O senhor não tem noção das coisas que vi naquela enfermaria, doutor”, dizia, com as janelas dos olhos mostrando as lembranças como filme e as torneiras se abrindo, vertendo lágrimas.

“Imagino que deve ter sido muito chocante para você, que nunca havia passado tanto tempo em hospital, não é?”, perguntei.

“Muito, não. Tempo nenhum. É claro que eu sabia que o lado de dentro de um hospital não é só beleza, com tanta gente doente e sofrida, mas agora, na pandemia…”, contava, levantando a cabeça, como se procurasse sentido para as memórias em algum lugar. Logo voltava a me fitar e complementava:

“O senhor tem ideia do que é ver cinco pessoas morrerem no seu quarto? Cinco! Eu só fiquei lá duas semanas e teve cinco pessoas que morreram naquele quarto. Teve até um, um homem bem velhinho, que acho que era acompanhado por um parente distante, que morreu bem na hora que esse parente saiu pra tomar café da manhã. Eu vi que ele parou de respirar, mas não soube o que fazer. Gelei. Depois consegui avisar ao enfermeiro. E a morte pra ele chegou assim, desse jeito qualquer. Como se ele não fosse nada. Numa hora, estava vivinho. Na outra, do lado de lá. O senhor sabe, né? Feito alma”, relatava, emocionada.

“Nossa! É de deixar o coração apertado só de ouvir”, completei.

“Foi bem difícil, doutor, bem difícil. Nunca pensei que ia viver pra passar por isso. Lembrei das histórias que minha avó contava, do que ela ouvia dos avós dela, das guerras… Antes de eu ir embora, pediram uma consulta com psicóloga e psiquiatra pra mim. As duas vieram juntas conversar. A situação tava tão triste que elas até desabafaram comigo. Disseram que não sabiam o que fazer primeiro: atender os pacientes ou os próprios profissionais. Todo mundo sofrendo. Uma vez o médico veio me examinar tremendo, porque tinha acabado de estar com um paciente que morreu. Outra vez uma enfermeira veio tirar sangue e começou a chorar. Perguntei o que houve e ela me contou: uma amiga dela, enfermeira também, tinha pegado o corona e tava na UTI, muito grave…”, suspirava.

“E depois dessas duas longas semanas, passando por tudo isso, estamos aqui, não é? Como é que você se sente agora?”, perguntei.

“Peguei um empréstimo, né, doutor”, disse ela.

“Um empréstimo? Como assim?”, questionei, confuso.

“Peguei uns tempos emprestados com Deus. Infartei, não consegui minha cirurgia, fiquei aqueles dias lá… e saí viva pra contar a história. Acho que ainda tenho o que fazer do lado de cá, né?”, perguntou, os olhos ainda brilhando, com lágrimas teimosas que escorriam pelas bochechas e molhavam a máscara.

“Eu acho! Vamos começar por onde?”, arrematei.

“Vamos me ajudar a cuidar do resto do meu coração, né?”, disse ela.

“Combinado. É um bom começo!”, e continuamos sua consulta, conversando sobre seus novos remédios e rotina com o coração “que sobrou” depois do infarto.

Sobre Perdão

por Carolina Reigada

Essa história vem de aaaantes da pandemia. A atendi em um momento delicado da vida. Descobriu que o marido, com quem compartilhava a vida há mais de 30 anos, a vinha traindo, sempre com a mesma mulher, inclusive na própria casa deles e – golpe quase fatal – o filho tudo sabia, e tudo acobertava. Dupla traição. Seu porto seguro era a filha, com quem abria o coração, e o neto, que alegrava seus dias. Tivemos algumas consultas, mas a pandemia nos interrompeu – interrompeu todo o mundo. Um ano se passou, ela retorna ao consultório. Quis perguntar sobre os conflitos familiares, mas ela entrou com outra agenda: pegou COVID. O marido, que tinha colocado as coisas no carro e se mudado para o estado em que mora a amante, começou a ter sintomas no mesmo período. A amante, também.

Marido e amante evoluíram rápido para quadros graves, e precisaram de internação. Ele não conseguiu vaga, e quando conseguiu, faleceu em dois dias. Ela, internada, após mais de um mês de cuidados intensivos, recebeu alta.

“Como a senhora ficou com o falecimento do seu marido?”, eu perguntei

Ela me contou que nem deu tempo de sentir. No dia que o corpo do marido chegou à Brasília, ao que seu filho saía de casa para o enterro do pai, ela saía de casa para o hospital, pois a falta de ar só piorava. Lembra de chegar em um primeiro hospital, de ser internada, de ver a filha falando com médicos.

Depois, se lembra de acordar e se ver rodeada de médicos, em um leito de hospital.

Olhou para a porta e leu “centro de cuidados intensivos”, e o nome de outro hospital, muito longe de sua casa.

Olhou novamente para todos aqueles médicos.

“Você está bem?”, eles perguntaram.

“Sim”, ela respondeu, sentindo-se flutuando no vazio.

Nisso, um deles mostrou, em um tablet, uma foto da filha e do neto.

Ela me contou que, nesse momento, uma EXPLOSÃO de alegria aconteceu no peito dela, que a deixou até sem palavras para explicar. Ali, ela encontrou todas as explicações que precisava, vendo aqueles dois rostinhos.

Recebeu alta, foi pra casa, começou todo o processo de recuperação e reabilitação fisioterápica que 22 dias no CTI impõem ao corpo.

Começou, também, a curar seu coração.

“Antes, meu coração era escuro e duro, parecia uma pedra de carvão, de tanto que eu desejava o mal pro meu ex-marido e pra amante dele. Eu só pensava nisso, era uma obsessão. Me fazia mal. Minha filha foi conversando comigo, falando em perdão, e hoje eu só sinto aquela mesma alegria de quando eu vi os rostinhos deles no tablet. Não tem espaço no meu coração pra toda aquela escuridão.”

“Fico muito feliz por você”, eu falei. “Perdoar é um ato de amor a nós mesmos, nos livra dos pesos para que possamos seguir em frente.”

“É, hoje eu ainda não entendi que ele morreu. Pra mim, ele ainda está lá, na casa da amante.”

Aí ela deu um sorrisinho.

“E ela sobreviveu, mas está muito mal, viu? Vi as fotos do aniversário dela no facebook. E acabou que não nos divorciamos no papel, então ele morreu como se ainda estivéssemos casados.”

“A senhora dedicou mais de 30 anos da sua vida a cuidar dele, mesmo”, eu falei

“É. Eu perdoei. Mas ela que não venha procurar problema aqui, que tudo que ela ganha é um tapa na cara”

Eu soltei uma risada. Reabilitar o coração demora mais tempo que reabilitar o corpo, e isso todos nós sabemos.

Merecedores de vacina

por Mateus Queiroz

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Duas pacientes vieram por motivos parecidos para consultas separadas, porém com abordagens opostas de um problema central. Vacina. Ou melhor, a falta dela. A primeira, possui asma não grave, porém não incapaz de trazer problemas ao longo da sua vida até hoje. Relata que tem asma desde sempre, chegando a ser internada quando criança e fazendo uso de bombinha até hoje, especialmente nas mudanças de tempo que tivemos nessas últimas semanas. Veio para receber um laudo para vacinação contra a COVID-19. Apesar de ter sido incisiva, e obviamente sofrer com a sua condição, não possuía indicação de acordo com as recomendações da prefeitura. Acompanhava a residente da minha equipe, e tomei para mim a missão de conversar e tentar explicar para aquela mulher as questões que nos levaram a não fornecer o laudo. A paciente com seus 30 e poucos anos entrou na sala de atendimento portando em mãos seu álcool-gel e sua máscara PFF2, algo bastante raro nos atendimentos que acompanho. Expliquei a situação de que no momento, a indicação era apenas para pacientes com casos considerados mais graves de asma, o que a gente conseguia identificar pela medicação usada e, para minha surpresa, o questionamento dela não veio disso inicialmente. “Tem até autista e síndrome de Down tomando que não sobra vacina pra quem precisa” Decidi tentar ser mais incisivo, porém didático. Expliquei que, na minha visão, antes de qualquer discussão sobre vacina, é necessário lembrar que o governo federal se recusou e continua se recusando a realizar um planejamento funcional sobre a vacinação contra a COVID. Expliquei que a fala dela era errada por uma questão de direito e de saúde pública que garante o direito desses grupos serem priorizados na vacinação, e que na verdade, o certo era todas as pessoas serem vacinadas, que a vacinação não é um movimento individual, mas sim coletivo. Me pareceu mais receptiva com os conceitos que expliquei. Depois tive que explicar como a gente considerava a gravidade dos casos de asma e como a gente sabia do incômodo que isso trazia na vida dela, porém não era considerado suficiente para vacinação prioritária, não de acordo com a gente, mas de acordo com o que preconiza a secretaria de saúde. A paciente ficou visivelmente irritada com a recusa. Todos sabemos os fatores estressantes que a pandemia nos impõe, mas a ideia inicial dessa paciente claramente contribuía para aumentar esse estresse e, sinceramente, conseguia entender o ponto de vista dela. Ora, qual é o motivo deu, que tenho doença e sigo à risca as recomendações, não poder ser vacinada, mas alguém que tem uma doença que talvez a paciente nem compreendesse muito bem poder? O segundo paciente era obeso, IMC por volta de 39, disse que tinha tomado coragem para vir saber se podia receber laudo para vacinação. Fiquei curioso, “como assim tomado coragem? De sair de casa com o vírus por aí?”. Paciente ri e diz que não, tinha tomado coragem pois havia refletido muito na última semana sobre se merecia ou não se vacinar e se estaria furando a fila da vacinação de alguma forma, com medo dos tais “fiscais de comorbidade”.

Nas reflexões que tive após esses momentos fiquei feliz em perceber como a Medicina de Família e Comunidade se coloca sim como agente político, no sentido de promover alterações materiais na vida dessas pessoas. Como o ser humano é mais do que os seus sofrimentos. “Ser é mente; o corpo, mero porta-voz. Não existe doença básica. O indivíduo é um complexo biopsicossocial. Institucionalizar simples organicismo ao ato do atendimento médico é confundir sintoma com doença, é negar a importância da escuta qualificada, da competência em reconhecer o que escapa ao óbvio da história clínica. Uma consulta serve a vários propósitos. Uma queixa pode ser uma pergunta ou uma resposta.” Seja ao realizar visitas domiciliares, seja ao realizar pré-natal de gente que nem tem casa para morar.

Nesse momento devo ter esboçado um sorriso por baixo da máscara, de alívio por eu estar ali na consulta, e não alguns colegas de faculdade que tem mostrado posturas no mínimo questionáveis para não dizer outras coisas. Comecei explicando que qualquer discussão sobre vacinação precisa partir do princípio que o processo de compra de vacinas tem sido ativamente sabotado pelo governo federal. Falei sobre os processos de vacinação não serem medidas individuais, mas sim coletivas, então para se analisar é preciso pelo menos considerar uma perspectiva coletiva. Como as comorbidades são elementos que muitas vezes as pessoas carregam e nem sequer se dão conta de como pode ser prejudicial ao longo da vida. Não era uma questão sobre se o IMC dele era próximo o suficiente de 40, mas sim que era direito dele pelo menos saber sobre isso, e não ser coagido a nem procurar, por pena de um julgamento moral. Após conversarmos mais um pouco descobrimos que o paciente era também era hipertenso, o que tornaria a exigência de IMC para vacinação bem mais baixa do que o IMC 40. Laudo na mão, continuei a explicação pois senti que o paciente havia tirado um grande peso das costas e estava extremamente receptivo para aquele momento de troca. Meu último ponto foi que até então, nenhuma secretaria de saúde do país havia relatado falta de vacinas devido a algum suposto excesso de pessoas com comorbidade se vacinando. Na verdade, não só não houve falta, mas a cidade do Rio de Janeiro só vacinou 65% das pessoas com comorbidade e está tendo que fazer repescagem de vacina (https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/05/30/rio-meta-vacinacao-comorbidade.html). Como se fosse algum tipo de culpa das pessoas elas terem condições que estatisticamente vão diminuir a expectativa delas. Aproveitei para incentivá-lo a postar fotos e vídeos do momento sim, que ninguém tinha o direito de constrange-lo, e que, acima de tudo, aquele seria um momento extremamente marcante em sua vida, e que ele tinha todo o direito de curtir o momento. Assim como foi para mim no meu dia de tomar vacina. Gostaria de dizer que é uma postura inacreditável de parte relevante da comunidade médica e dos estudantes, mas a realidade é que não é. Nem um pouco. A individualização de absolutamente todas as questões sociais, e a vacinação é uma delas, é um sintoma bastante claro de como a classe médica como um todo – e nisso tenho clara ciência de como a Medicina de Família e Comunidade representa e é um contraponto essencial, não só do ponto de vista clínico, mas também político – é dominada por uma ideologia que vai a todo momento culpabilizar o indivíduo em seu processo de doença de forma muitas vezes desonesta. Não é difícil achar informações sobre a gigantesca prevalência de doenças cardíacas e diabetes em nossa população e os impactos disso na vida. A realidade é que desde sempre, mas especialmente desde os governos de esquerda o núcleo da classe médica tem mostrado todo o seu pavor com a possibilidade de se tornar médico de família e ter que atender gente pobre. Desde a recepção assustadora aos médicos cubanos por ocasião do programa Mais Médicos até as atuações mengelianas de médicos paulistas no Amazonas durante a pandemia.

Sônia

por João Rana


Aos 30 anos anos, Sônia morreu.

Sim, Sônia morreu, faleceu. Partiu, teve um fim, foi-se embora, realizou a passagem ou “foi para os braços do Pai”, como dizem os mais religiosos.

Seu funeral não sairá nos jornais, tampouco serão ofertadas homenagens públicas à sua pessoa. O mundo não irá parar e a bandeira não ficará a meio mastro Brasil afora.

As cidades seguirão suas rotinas como sempre: trabalho, sirenes, gritaria, buzinas… trivialidades… barulho de obra no escritório ao lado, uma criança pedindo esmola na sinaleira, dois passarinhos desconfiados repousando na sacada do prédio, o eco de “Bora Bahêa Minha Porra!” ao gol do tricolor, o vizinho que exibe orgulhoso a potência do seu home theater com a live do Luan Santana… silêncio.

Ocorreu algo que (infelizmente) era esperado por muitos de nós, veteranos de guerra da Atenção Básica, mas que nem por isso perdeu seu teor trágico e pessimista.Em vida, Sônia mantinha sempre que possível, com uma naturalidade inabalável, um sorriso e um respeito por todos que a atendiam e a conheciam. Até mesmo a icterícia não conseguia afastar a profundidade e o brilho do seu olhar.”Sim, senhor.” “Não, senhor.” “Valeu, Andréa!” “Muito obrigado, doutor Rana. Deus te abençoe.” “Eu dou muito trabalho a vocês, né?”.

Em nossa relação, sua revolta residia apenas numa iminente medicação injetável: “Ah, não, doutor! Vou tomar não! Injeção não, Deus é mais! Oxe!”. Um medo para aqueles que restavam ter medo de pouca coisa, tamanha coragem ou diminuta perspectiva diante do sofrimento: antes dos quarenta, Sônia tinha cirrose hepática Child-Pugh B pelo uso de álcool. Sua mãe, antes dos 60 anos (aparentando 80), padeceu da mesma condição. Uma irmã mais nova, aos 14 anos, faleceu por uma intoxicação alcoólica aguda, um tempo após dormir embriagada sobre um recém-nascido, morto por asfixia. Quase todos os seus familiares fazem uso nocivo ou são dependentes de álcool, constituindo uma ferida social e intergeracional absurda, cujas raízes entremeiam-se com a pobreza, a desestruturação familiar, a educação básica precária e (sim) com a historicidade da escravidão. Sônia não ia à unidade básica de saúde frequentemente (embora devesse fazê-lo). Quando comparecia, prometia retornar em breve, como solicitado, mas sempre esbarrava em alguma situação que a impedia ou a desestimulava em estar presente. Grande parte dos seus atendimentos foram em visita domiciliar. Eu percebia uma certa vergonha e desconforto em ser vista daquela forma, diante da sua vaidade e pouca idade, mesmo que objetivamente precisasse. Em muitos atendimentos ela encontrava-se com algum grau de alcoolemia, o que embora lhe desse um ar irônico e anedótico na própria fala, com risco inclusive de amnésia posterior e outros constrangimentos, a fazia sentir-se mais relaxada para discorrer sobre si mesma. Da última vez que a vi, estava com as pernas bem inchadas, provavelmente por conta da sua hipoalbuminemia, não conseguindo calçar a própria sandália. Ela adentrou a unidade com os pés descalços neste dia. Éramos velhos conhecidos, sem meias palavras. O brilho já era bem ofuscado pelo amarelo, mas ainda estava lá. Mediquei, orientei, falei com um familiar e pedi que não demorasse pra voltar, mas não surtiu efeito. O mesmo aconteceu quando foi encaminhada ao CAPS, para manejo conjunto do seu alcoolismo pelo psiquiatra e psicólogo, ou quando foi referenciada a um gastroenterologista, devido à sua cirrose hepática. Neste último, nem mesmo chegou a ir.

Sua agente comunitária de saúde (ACS) é um dos seres humanos mais especiais que tive a honra de conhecer. Não há duvidas de que Sônia teria vivido muito menos se não fosse a existência dela. Mas nem sua dedicação e atenção foram suficientes para que ela fosse salva, pois Sônia vivia em um ambiente totalmente desfavorável à sua saúde, sem conseguir desvencilhar-se. As paredes de sua casa ruíam, tal qual seu fígado, e é bem provável que a bebida lhe oferecesse alguma companhia para afastar o vazio, anestesiando a constatação de tamanha iniquidade. Os móveis, bem surrados e avariados, pareciam ter sido doados ou adquiridos em algum terreno baldio. Entre a sala e a cozinha, uma mesa improvisada com cadeiras e uma tábua de madeira servia de repouso para peças de dominó dispersas: um jogo caótico e improvisado encenado em aridez de vida. Frequentemente se achava a casa de portas abertas, empoeirada e com fluxo livre de pessoas. Muita exposição e pouca delimitação para o exercício da própria individualidade, segurança e privacidade. Vizinhos próximos de costumes alcoolistas costumavam se reunir naquelas redondezas, num vai-e-vem, sendo que muitas vezes a casa servia de ponto de encontro. A maior parte da renda da casa era proveniente da aposentadoria do pai de Sônia, com o restante vindo da ajuda financeira de um irmão, alguns trabalhos domésticos que fazia com uma irmã e o auxílio de benefícios sociais. O namorado de Sônia, vulgo “Ninho”, também tinha problemas com o álcool. Possuía cerca de 1,60m, aparência franzina e sinais de que sofreu desnutrição na infância. Demonstrava preocupação com a companheira. Pegava remédios para a mesma, perguntava sobre seus exames, a visitava no hospital quando internada, mas por vezes não tinha as mínimas condições cognitivas, psíquicas e sociais de ajudá-la.Ajuda financeira com medicamentos não disponíveis no SUS, jogo aberto, cuidado e interdisciplinaridade não deram conta do que ela precisava.Penso o que poderia ser feito de melhor e diferente. Outrora imagino se ela mesma (ou eu, inconscientemente) não desejava seu descanso finalmente, após tantos percalços. Logo depois, reflito sobre o que pode ser uma negação pessoal da realidade manifesta. Pois se não podemos desistir das pessoas, também precisamos reconhecer os nossos limites para extrair potências luminosas da escuridão das nossas impotências. Antes de mais nada, não podemos desistir de nós mesmos.De um jeito ou de outro, sua morte não poderia acontecer em vão, de modo que amplifico quantas “Sônias” existem por aí, nos bastidores da nossa alçada de “país em desenvolvimento”, totalmente às margens da sociedade. Quantas ainda morrerão ou, pior, experimentarão a morte em vida? Desesperança, desamparo, desagregação, compulsão… e ao mesmo tempo ternura, respeito e humildade.

Desculpe por qualquer coisa, Sônia, e obrigado. E se este mundo não permitiu que você fosse devidamente valorizada no palco da vida, que sejas ao menos protegida e lembrada no descortinar dos véus do teu drama.

Quando penso em desistir da Medicina, algo de inexplicável (que acesso após a tempestade) me faz procurar feixes de luz em meio ao caos absoluto. Eu chamo isso de “alma” e ela se expressa muito na escrita. São lutas desiguais que precisamos travar todos os dias, mas mesmo quando perdemos, nossa alma pode aprender e ganhar algo com isso. Não sei se é necessariamente bom, mas sinto ser algo que não morre e que não tem preço: atemporal, imaterial e universal, manifestada de um jeito ou de outro, singularmente, em toda vida humana. Dar voz, vez e vida aos esquecidos, marginalizados e renegados. Iluminar as nossas sombras e refletir sobre elas nos permitem integrar aquilo que também negamos ou ignoramos em nós mesmos, enquanto indivíduos e sociedade, em busca de uma existência mais inteira, solidária e consciente. A procura da essência do outro que reverbera em mim, apesar de tudo e de todos, que se não consegue impedir a morte em vida, ao menos busca renovar a vida na morte.

Eu nunca vou me esquecer de você, Sônia. Que os espíritos de luz (se existirem) estejam em sua companhia.


PS: nomes fictícios inspirados em uma história real.