Hoje eu não consegui escrever

por André L. Silva

Hoje eu não consegui escrever
Quando escrevo, encaro o texto como um processo artesanal. Entendo letras, frases e parágrafos como pontos de uma grande costura ou bordado, como de um manto de monge. Pode levar minutos ou semanas. O processo é a grande magia.
Muita coisa aconteceu comigo em menos de um ano. Novo trabalho em uma clínica de Atenção Primária, nova universidade onde ensinar, o começo de uma caminhada como monge zen… tanta coisa aconteceu, tantas possibilidades e quantas histórias surgiram!
Era sábado, e eu estava a decidir qual história escrever. Estava em dúvida entre Ângela, aquela moça de um coletivo feminista em crise de ansiedade pela onda de violência nesses tempos hostis de eleição… ou quem sabe Amanda, aquela adolescente que tentou suicídio e estávamos a conversar sobre conflitos familiares e internos… ou sobre aquele casal, Pedro e Laura, que desejava muito engravidar e está em luto após mais uma perda gestacional…
Enquanto as ideias pulavam serelepes na minha cabeça raspada e no meu bloco de notas, lembrei que precisava ir no mercado comprar umas coisas para um aniversário à noite, além do presente para o aniversariante, claro.
Fui eu com a minha careca e meu samuê (roupa de prática zen, geralmente preta)… feitas as pequenas compras sem maiores surpresas – só a pressa em pagar os sacos de gelo e levar logo para casa para não derreterem.
Fui para a fila no mercado de boas, com minha careca, meu samuê preto e meus fones de ouvido tocando Gal Costa.
Na minha frente, dois homens concluíam suas compras, com seus músculos, tatuagens e suas camisetas de jiu jitsu. Depois vi que um deles, o mais baixo, tinha um adesivo de um determinado candidato à presidência. Até aí, nada demais. Porém, do nada, esse homem mais baixo começou a me encarar – e pelo olhar óbvio que não era de cantada haha – , e também começou fazer sinal com a cabeça do tipo – vai encarar?
Fiz cara de samambaia (uso esse termo com frequência – que cara que tem uma samambaia?), e esperei minha vez, estático. O outro homem saiu, e esse cara parou em frente ao caixa e começou a fazer sinal do tipo – vou quebrar sua cara (falando baixinho e socando a mão).
Eu discretamente avisei à moça do caixa que também percebeu e de pronto chegaram seguranças do shopping onde fica o mercado e convidaram o cara a sair. Ele ficou tipo fingindo que não estava fazendo nada, aí começou a fazer escândalo até ser retirado. No meio da sua ira e de seus gritos, ele solta um “esses degenerados vão sumir do mapa!”
Tive que ser acompanhado por seguranças até o carro. Escoltado, como se tivesse cometido algum crime. Entrei no carro com as compras como em transe, talvez como uma samambaia.
Foi às 13:30 de um sábado de um mercado lotado.
Cheguei em casa e não consegui esboçar reação nenhuma. Guardei as compras ainda em transe, como uma samambaia.
Ao parar sobre meu caderno de notas, a cena começou a reverberar na minha cabeça. “Degenerado”. Minha cabeça raspada é degenerada? Meu samuê preto é degenerado? Minha religião de não violência e harmonia com todos os seres é degenerada? As pessoas que atendo são degeneradas? A forma de amar das pessoas que atendo é degenerada? A cor da minha família é degenerada? Quem ou o que é degenerado ao ponto de sumir do mapa?
As músicas e as poesias todas sumiram da minha cabeça raspada. Só consegui lembrar e finalmente escrever dois artigos do Código de Ética Médica:
“É vedado ao médico:
Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Art. 25. Deixar de denunciar prática de tortura ou de procedimentos degradantes, desumanos ou cruéis, praticá-las, bem como ser conivente com quem as realize ou fornecer meios, instrumentos, substâncias ou conhecimentos que as facilitem.”
Sobre o bloco de notas, chorei muito. Desculpe, Ângela. Desculpe Amanda. Desculpem, Pedro e Laura. E me desculpem, amigos do Causos Clínicos, de quem eu recebi tanto amor e apoio. Desculpe, irmão do Henfil. Desculpem Marias e Clarices.
Hoje eu não consegui escrever. Prometo tentar até o fim. Por mim, por nós, por todos os seres.
XXX
Músicas que inspiraram essa história mais real do que nunca, que impedirão que as minorias se curvem:
  • Felicidade – Marcelo Jeneci
  • A paz (Leila IV) – Zizi Possi
  • Aos nossos filhos – Elis Regina
  • Tempo de Pipa – Cícero
  • Vagalumes Cegos – Cícero
  • Cordão – Chico Buarque
  • Quase sem querer – Roberta Campos
  • De toda cor – Renato

Playlist atualizada: https://open.spotify.com/user/12149067289/playlist/19A1B37g1lkTQFD9UDJjfQ?si=EZavZV0BQJG7raaa-_qYmQ

3 comentários sobre “Hoje eu não consegui escrever

  1. Querido André, li a tua história, fiquei chocada e triste, pela injustiça e crueldade. Tempos difíceis, mas mais do que nunca precisamos de pessoas que nem tu. Precisamos acreditar nos seres humanos e na possibilidade de educar pessoas para o bem!!! O teu texto é inspirador e as músicas complementam. Beijos

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  2. Gratidão por partilhar seu relato, compartilhar a triste realidade que viveu e que tantos outros irão viver lamentavelmente. Hoje votei com o olhar cheio de lágrimas. Já estou sentindo pânico em sair de casa sozinha. Tempos sombrios estão por vir…

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