por Arthur Fernandes
Uma conversa sobre um tempo passado que não volta mais, um tempo futuro curtinho adiante e um tempo infinito entre esses dois. De tão maravilhoso, dizem que é chamado “presente”. Uma conversa entre uma professora de vida, que usou a própria morte como instrumento para ensinar ao jovem doutor como cuidar de gente. Aliás, “meu doutor não, porque tem idade de ser neto. Você é o meu amor!”.
“Trago no peito costuradas
Contas de memória fresca
Pão quentinho sobre a mesa
O cheiro sobe a escada
Acordo e não vejo nada
O tempo é sua morada”
– Já pensou como seria esse momento? Como você queria estar ou como queria que seu corpo estivesse?
– Ah, sim, né. A pessoa tem que morrer limpinha, bonitinha e cheirosinha. É o que que quero. Nada de grude e sujeira. A pessoa já vai morrer, e ainda ir fedendo, é demais, né não?!
“Trago na aba da minha saia
Costurada em zigue-zague
Café preto e um cigarro
Seu canto e gargalhada
Ecoando pela casa
O tempo é sua morada”
– E sobre sua família? Tem sido difícil para eles também, não é?
– Não deve ser fácil não…
– E você acha que eles têm condições de aceitar a sua morte?
– Oxe, mas se eu, que sou a vítima, tô aceitando, eles têm mais é que aceitar também! Nada disso de revolta. Anote aí: tem que mandar chamar tudinho e botar pra ficar aqui, segurando minha mão, me chamando de bonita e contando piada!
“Se o vento te levou, o tempo é sua morada
Se o vento te levou, o tempo é sua morada”
– Eu sei que hoje ainda não dá para ir para casa. Você gostaria de morrer lá?
– Essa Casinha aqui é boa, mas não tem nada melhor que a casinha da gente. Você entende, né? Ah, e quero morrer com meus bichinhos. Quando eu chegava em casa, meu periquito se animava, só faltava soltar um sorriso, de tanta alegria que tinha! Não o sei o que ele via… se era só eu mesma ou algo mais… mas bem, ele se alegrava e eu também!
“Não levo dor e nem tristeza
Ponho as cartas sobre a mesa
E a ferida cicatriza
Toda pena um dia passa
E o amor vira certeza
O tempo é sua morada”
– Está faltando alguém chegar para te ver?
– Tá sim! Minha norinha. Minhas filhas já estão por aqui, mas ainda falta ela, num sabe? A bichinha… é meu amor também.
– Entendi… e como você fica quando todas elas estão junto?
– Empanzinada de chamego!
“Se o vento te levou, o tempo é sua morada
Se o vento te levou, o tempo é sua morada”
– Ficou alguma coisa por dizer?
– Não… Eu já entendi tudinho que você tá querendo me mostrar com essa prosa. E é isso: eu nunca quis ficar pra semente mesmo! Todo mundo tem que fazer a passagem.
– E se pudesse imaginar sua passagem do seu jeito mais bonito, como seria?
– Você sabe que eu num sou boa com as palavras. Isso daí eu deixo pra você pensar! Mas ia ser feliz, né?
Para mim, seria assim:
O corpo, puído pelas agruras da vida, recuperando um pouquinho de energia e se renovando, das pontas dos pés aos últimos fios de cabelos brancos.
Os pulmões, combalidos pela fumaça dos anos, sacudindo a poeira e se enchendo de ar puro.
O riso leve, fluindo solto, enchendo a casa e se misturando com os risos frouxos dos seus muito amados. Sua família. Seus amigos. Seus bichinhos. Até a sua passagem acontecer.
Sua celebração.
“Não vou esquecer
Não vou esquecer
Vou te celebrar
Não vou esquecer
Vou te celebrar
Não vou esquecer
Vou te celebrar”
Um xero!