Olhar à deriva

por Aarão Carajás Dias dos Santos

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Andava como se navegasse em mar revolto, tateando no vento alguma âncora para se manter firme…no meio de tantas ondas dois olhares faróis o avistaram…mandaram sinal para meu barco que então mudou a direção…é que gente como a minha costuma ter o coração como bússola.
Conheci então seu Antônio, usuário que vinha atrás de uma improvável consulta com o Oftalmologista visto que a fila de agendados estava alta. Portador de glaucoma e sem estar sendo acompanhado há mais de um ano e meio trazia no hálito etílico das 8 horas de uma terça-feira a assinatura de alguém que lutava para não esquecer de si.
– Olá seu Antônio, em que posso ajudar?
– Gostaria de uma consulta com o médico da vista.
– O sr. está agendado?
– Não.
– É acompanhado em algum posto?
– Faz mais de ano que não vou, não consigo…
– E o que fez o sr. vir hoje procurar nossa ajuda?
– Quase não consigo ver, minha vista turva…
– Vamos ver o que podemos fazer…
Seu Antônio tentava assim um raro suspiro de vida em uma história de motoqueiro fadada ao fim com o início do problema de vista. Conseguimos o encaixe e ele foi visto pela equipe de oftalmologia. Quando dei a notícia de que haveria a consulta…senti uma reação incomum….parecia que há tempos não era ouvido e que estava sem entender o que sentir por ter sido ajudado…ele então segurou meu ombro e se permitiu ser guiado até a sala…
Saia da deriva pelo simples fato de confiar…
Antes do último passo em direção da entrada ele se virou, procurou o rumo da minha face e disse…
– Eu sei que minha vista é embaçada, quase não enxergo normalmente, mas tenho certeza de que agora ela está turva não por causa de meu problema, mas por causa de minhas lágrimas….muito obrigado pela ajuda.
Naquele momento senti o mar revolto se transformar em um banzeiro de rio…o reencontro dele com a paz de espírito por estar vivo o retirou da tormenta de seu entorno…
Após a consulta o levei para agendar os exames que ocorrerão na semana que vem e em seguida para consulta com o serviço social…
Se é dito que precisamos agir com todas nossas possibilidades como se estivéssemos com o braço levantado na direção do ombro da pessoa em nossa frente…acredito que nós da MFC* cobrimos com braços de gigantes.

A âncora que o prendia foi amarrada em balões e então flutuou…seu Antônio não mais navega à deriva, agora ele voa com as borboletas…e tem a certeza de que está vivo.

Aarão é médico de família e comunidade de Belém-PA. Atualmente em Recife-PE
*MFC=Medicina de Família e Comunidade
Imagem: poster “Homem à deriva ao olhar para si”, Galeria Susano Correia

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