por Jaqueline Okada
Na faculdade, aprendi que deve-se, de bom tom, iniciar uma consulta com um aperto de mão. Principalmente as primeiras consultas. Dizem que é uma forma de estabelecer uma relação sem perder a formalidade, que nossa sociedade ainda exige dos atendimentos profissionais.
Estava na terceira semana do internato de Medicina Geral de Família e Comunidade. Era uma quarta-feira. Cheguei na Unidade de Saúde Santa Felicidade pela manhã e com a sensação de que estava no lugar certo. O clima estava do jeito que nós curitibanos gostamos: o friozinho aconchegante com sol para lagartearmos; e apesar de ser londrinense, curitibana de coração, esse é meu clima favorito. Após atender parte da agenda e discutir com meu preceptor, percebi que estávamos um pouco atrasados. Ele me pediu para que atendesse a última consulta, o encaixe (não são nessas que sempre acontecem as coisas?). Me explicou o que era: uma senhora que estava com dor torácica e falta de ar trazida pela empregadora. Abri o histórico da senhora que iria chamar. Dona Maria, em seus 30 e poucos anos, não tinha muitos registros na Unidade, não tinha comorbidades, mas em um dos registros de atendimento na atenção especializada constava que ela tinha uma Insuficiência Renal grave, precisaria de diálise e transplante renal. Procurando mais, encontrei que seria realizada uma fístula* na segunda-feira.
Sentindo que o clima seria difícil, respirei fundo e fui chamar Dona Maria. Chamar o nome do paciente em uma sala de espera tem sido menosprezado por muitos médicos. Mas olhar aquelas pessoas e aguardar os primeiros movimentos daquela que se identificou tem seu valor. Com isso, conseguimos construir tanto na nossa primeira abordagem, porque, muitas vezes, não conhecemos nada daquela pessoa, alienígena em nosso atendimento. Pessoas com sacolas, fazendo crochê ou palavras cruzadas, acompanhantes que não entram em consulta, acompanhantes caninos que não podem entrar em consulta. Pessoas que estão irritadas com a demora e depois agem docemente com o médico porque precisam muito do atendimento. Chamar o nome é estudar a espera, é aguardar a revelação da pessoa que não mais aguarda.
Dona Maria estava sozinha, se levantou rápido e veio até o consultório em passos largos. Ofereci um aperto de mãos, que foi correspondido sem troca de olhares. Ao soltar minha mão, dona Maria soltou-se de corpo, esparramando-se na cadeira e segurando a cabeça em apoio na mesa. Perguntei se poderia fazer algo por ela naquele dia. Ofegante e com desespero na fala, contou-me que foi trabalhar e após subir a rua inclinada do seu local de trabalho começou a passar mal. Pediu para a empregadora levá-la à Unidade de Saúde, que mesmo um pouco contrariada, levou-a. Dona Maria trabalha como diarista e há alguns meses, pela insuficiência renal piorando, vinha apresentando cansaço e dificuldade de exercer suas funções laborais, gerando atrito com a chefe. Enquanto Dona Maria conversava comigo, tinha olhar distante, vazio. Poucas vezes fazia contato visual. Ela teve o diagnóstico de uma doença renal durante a infância e mesmo após alguns tratamentos evoluiu para insuficiência renal. Após explorar os sintomas e informações relacionadas à saúde e examiná-la, perguntei-a sobre a vida. Ela tinha uma filha adolescente, havia sido mãe solteira jovem. Morava sozinha com ela, ao lado da casa da mãe, que abrigava sua irmã e sobrinha. Me contou que tinha dificuldades financeiras e que se pudesse iria parar de trabalhar porque estava sempre muito cansada. Tinha desentendimentos frequentes com a filha, mas ela era seu maior ponto de apoio.
Perguntei, então, como estava lidando com o quadro renal, como se sentia frente ao procedimento que seria realizado em uma semana. Nesse momento, Dona Maria me olhou, olhou de verdade. Pela primeira vez na consulta fez contato visual que durou mais que segundos. Junto, vieram lágrimas e uma angústia que parecia consumi-la por inteiro. Ela tinha muito medo de morrer e deixar a filha. Medo de não conseguir um transplante. Tinha medo de não conseguir trabalhar e não poder oferecer qualidade de vida para a filha. Não tinha forças para trabalhar, mas precisava para sustentar as duas.
Dona Maria estava exteriorizando seus medos e eu, internalizando os meus.
Tive medo de não conseguir ajudá-la, de deixar que meus sentimentos atrapalhassem o atendimento e piorassem sua situação. Tive medo de não ser forte pela Dona Maria, que sempre foi tão forte na vida. Mãe solteira, trabalhadora, que faz de tudo pela filha, mas que vê a linha de chegada aproximando-se mais rapidamente do que o afastar-se da linha de largada. Ouvi com atenção tudo o que tinha para me contar. Não encontrava palavras para confortá-la. Disse que não deveria ser fácil a situação que estava vivendo e, com um sorriso doloroso, que nós da Unidade estávamos disponíveis para ajudá-la sempre que preciso. Após passar o caso para o preceptor, decidimos prescrever analgesia e oferecer um atestado para o resto da semana para que pudesse descansar até o procedimento.
Ao iniciar as consultas, sempre as faço com um aperto de mão. Ao final, ofereço-a novamente como gesto sociável e para fechar a consulta com um contato humano que transmita confiança e apoio. Mas, em algumas consultas, a alma do médico e seu paciente ficam tão entrelaçadas que o aperto de mão não parece suficiente, e então, a energia e o magnetismo da necessidade humana de conforto e cuidado juntam os dois corpos em um abraço: a prova de uma conexão, de uma troca, de um laço. O abraço de Dona Maria me englobou inteira. Por alguns segundos não havia futura médica, paciente ou doença. Só duas almas buscando conforto. Depois, sem soltar minha mão, ela me olhou com olhar doce e me agradeceu. Assim que fechei a porta não consegui segurar o choro. Não conseguia entender porque houve essa contratransferência tão intensa. Já havia atendido casos difíceis e alguns com piores desfechos que não me afetaram dessa forma. Talvez tenha visto nela minha mãe, mulher guerreira, que por um tempo cuidou dos filhos sozinha, sem apoio.
Então, para minha surpresa, meu preceptor abre a porta e me encontra chorando. No seu olhar podia ver uma mistura de orgulho, pela aluna que se importou e criou vínculo com a paciente, e preocupação, pela futura médica de família que vivenciaria muitos casos similares e que poderia ser prejudicada pela contratransferência. Até o final do estágio, ele me orientou e ajudou a enfrentar o manejo das dificuldades e sofrimento das pessoas sem que eu perdesse a sensibilidade e carinho com meus futuros pacientes. Assim, a ele e à Dona Maria, ofereço meu conto.
*fístula: no caso, é o encontro entre uma artéria e uma veia, confeccionado cirurgicamente, para servir de ponto de acesso e realização da hemodiálise.
Jaqueline é acadêmica do 12º período da FEMPAR
Parabéns!!! Dra.Jaqueline,sabemos o que enfrentamos juntas, tantas dificuldades,tantos choros ,muitas orações,sabia que ia conseguir mesmo sem ajuda(matéria de medicina😲) mas me alegro em ter plantado o sentimento humano em seu coração e a doçura em seu olhar! enfim formada💗👏🙏
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