Fé no Cuidado

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por Carolina Reigada

Eu tenho andado desanimada com a medicina. Já vinha há uns meses, aí quando um paciente (cujo causo ainda escreverei) me falou que “médico e remédio é tudo tapeação”, eu concordei com ele. Muito. Meu coração concordou muito com ele.

Vejam, ser médica ou médico de família e comunidade não é fácil. Você está sempre contra a corrente. Você é aquele que repensa o remédio, diz que o exame não precisa e, muitas vezes, trabalha no posto de saúde do bairro e fica conhecido como o “médico do postinho”.

Com todo o PESO que ser o cara do “postinho” traz, sabe? Médico de família e comunidade é um especialista, sabiam? Ele faz residência que nem o cardiologista, o pneumologista, esses “istas” todos. Mas muitos médicos e pacientes nos acham… assim… inferiores aos “istas“. É. Inferiores. Tipo:

“Leva essa receita lá pro postinho que eles ficam renovando pra você” – gente, eu posso discordar da prescrição, eu sou médica também.

“Leva esse exame lá pro postinho que ele transcreve pra você”. – eu posso discordar da indicação do exame, sabe?

“Você leva seu filho no médico do postinho???? Que mãe ruim!” – é, uma vez uma paciente disse que a professora da creche julgou ela porque ela acompanhava no postinho. A parte feliz foi que a resposta dela foi: eles sempre acertam com meu filho e comigo. Ufa.

Enfim, lá estava eu, desanimada…eu tinha vestido o estereótipo de médica do postinho e estar me achando assim…inútil. Me perguntando se eu sirvo pra alguma coisa além de renovar receita e transcrever exame.

Eis que chega o residente: “Carol, não sei o que essa paciente tem.”

“Hum…que tá acontecendo?”

“Ah, ela tá com dor no corpo todo! Ela apoia o braço, tem dor. Apoia a mão, dor. Anda, dor. Mexe o pescoço, dor. Tudo dói!”

Aí, falamos de várias coisas biomédicas menos interessantes, conversamos sobre diagnósticos diferenciais, até que entramos no consultório para falar com a paciente. Olha ela:

“É que eu vou na pneumologista e ela só olha o pulmão. Eu vou no cardiologista e ele só olha a pressão. Agora, dor no corpo todo…eu não sabia onde ir. Vim pra cá, pra vocês olharem tudo”

Já fiquei mais feliz, ó, alguém me valorizou. Aí eu:

“Me fala mais dessa dor, quando começou?”

“Ah, tem um ano…mas tá muito pior há 3 semanas”

“E o que estava acontecendo na sua vida há um ano?”

“Ah, eu tive enfisema há um ano”

“Teve…ou tem?”

Pausa. Choro.

“Eu não planejei isso. Eu tenho 50 anos e tudo me cansa, forró me cansa, trabalhar me cansa. Eu não consigo seguir o ritmo das outras pessoas. Eu não consigo ir nas festas da minha família, porque todo mundo fuma. Eu vomito se alguém com perfume forte fica do meu lado. Eu nunca imaginei que chegaria aos 50 anos me sentindo com 70. Eu tento não deixar minha doença me definir, mas na minha família, ninguém leva a minha doença a sério”.

“Você acha que as dores têm a ver com o enfisema?”

“Eu acho, eu interno uma vez por ano, e cada vez que eu interno, eu saio pior. Mais fraca. É como se o oxigênio não chegasse nos meus músculos, aí eles ficam fracos e doem”

“Entendi. Realmente deve ser muito desgastante sofrer e não poder ser acolhida por ninguém”

“Você acha que tudo isso pode ser da minha cabeça, pode ser nervoso?”

“Eu acho que nervoso tem a capacidade de deixar tudo pior, inclusive as dores. Tem muita gente que fica nervosa e fica com dor no estômago, dor na cabeça…”

“Olha eu aqui, colocando os podres todos da família para fora, desculpa”

“Nada, estamos aqui pra isso. Quando a boca fala, o corpo sara”

“Nossa! Você tá falando de nervoso, então agora eu vou te dizer o que aconteceu! Já sei! É a minha sobrinha. Sabe quando isso tudo começou? Quando eu vim cuidar dela, depois do acidente dela. Larguei minha vida pra cuidar dela, e foram uns meses infernais. Assim que ela voltou pra casa dela, eu fiquei doente. Fiquei com enfisema. A partir daí, o corpo nunca parou de doer. E faz 3 semanas que ela ligou e disse que tá voltando pra cá.”

Risada

“Muito obrigada. É isso! Olha, a dor tá até melhor. Olha, vocês estão bem na fita aqui, hein? Era muito mais fácil só escrever dois remédios no papel e me mandar embora. Mas olha só…é isso. Muito obrigada. Eu volto daqui a umas duas semanas pra falar com vocês!”

E pronto. Ainda estou com a fé na biomedicina abalada. Mas foi só uma paciente reconhecer o nosso fazer diferente que voltei a ter fé no Cuidado.

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