por Eberhart Portocarrero Gross
Um dia desses faleceu uma paciente que eu vinha acompanhando em casa. Era uma senhora de 95 anos, já há algum tempo acamada por fraqueza, lúcida, com história de câncer de pulmão tratado há muitos anos, sobre o qual ninguém tinha mais detalhes, e com cuja filha decidi poucos meses antes que não valia a pena investigar o quadro novo de icterícia.
Fiz visitas repetidas para amenizar a coceira da icterícia, as náuseas e a desidratação, e preparar a família para o inevitável. A última visita foi numa terça-feira, às 10 da noite, para declarar o óbito, como eu tinha prometido que faria. Na ocasião, a filha me disse “vou passar um tempo sem aparecer, mas daqui a umas duas semanas vou lá na clínica”.
Dito e feito, hoje ela veio. Parecia discretamente nervosa, um sorriso apressado, os olhos mais tímidos no rosto magro de sempre. Ofereceu como motivo da consulta uma queixa de dor de cabeça, mas sem muita ajuda ela mesma concluiu que era por estar com o sono desarranjado, o dia sem rotina, essa rotina que nos últimos três anos consistira em cuidar da mãe.
Passou na frase seguinte a descrever os dias que antecederam a morte, a serenidade da mãe e a clarividência da mesma das visitas que viriam sem aviso do Espírito Santo, sua terra natal. No último dia, a filha preparou para a mãe a mesma comida que esta preparava para ela e os irmãos quando estavam doentes, uma sopa de carne bem molinha. A mãe agradeceu e disse que estava uma delícia. Mais tarde teve falta de ar e, quando foram fazer nebulização, ela recusou, não quero, disse com a voz já bem fraquinha.
Já com a clínica fechada, a filha ligou para pedir ajuda à nossa técnica de enfermagem, que sem saber do combinado sugeriu que a levassem para um atendimento de emergência. Em tom corajoso, a filha me disse que não levou, pois tinha decidido ficar ao lado da mãe até o fim, e assim fez. Que, em dado momento, a mãe abriu os olhos bem abertos, coisa que não costumava fazer, e a filha disse que viu neles um brilho lindo como nunca tinha visto antes. Olhou em volta, fechou, repetiu o gesto e fechou pela última vez. Foi uma morte muito bonita, a filha disse.
Em seguida passou a um tom mais prático, disse que ia procurar sair mais de casa, caminhar na praia, coisas assim. Agradeceu, me deu um abraço forte e foi embora. Ficamos eu e a estudante que me acompanhava emocionados na sala. Isso vai muito além da faculdade, ela disse. Eu citei uma dessas frases que li em algum lugar, e que gosto de repetir: “a atenção primária é uma cadeira na primeira fila para o espetáculo da vida”. E ela é mesmo espetacular.
Nossa que lindo Eberhart, a riqueza de detalhes na descrição do caso, nos faz sentir a emoção vivida por vcs no momento! Meus parabéns pelo excelente trabalho realizado👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏
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Obrigado, Kelly! Apesar de que eu daria mais crédito à tua sensibilidade do que à qualidade da descrição… ❤
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Emocionada e… orgulhosa!
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Que lindo! Ebh! Você vai ser meu médico e vai cuidar de mim! ❤️
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Que relato maravilhoso! Parabens Doutor, por sua prática humanista e um olhar diferenciado em relação aos cuidados paleativos. O mundo precisa urgente de médicos como vc! Muita luz no seu caminho.
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Muito obrigado pelo carinho, Isabela! Muita luz para todos nós!!
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Publique-se!
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Respondo: deveria escrever com mais frequência!
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Obrigado pelo incentivo!! =-)
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Que lindo relato! Fico feliz por você e justifico o orgulho de sua mãe.
Quando puder mande mais histórias como esta.
Aquecem nosso coração.
Beijos com carinho.
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Que bom que você gostou.
O incentivo para escrever é muito benvindo.
Beijos carinhosos também!
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Lindo amei seu relato. Me emocionei.
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Que relato lindo Dr, concordo que deveria escrever mais rs
Tenho muito orgulho em trabalhar com vc, precisamos de mais médicos assim…
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